Carta 67
Comecemos pelas banalidades! A primavera começou a mostrar-se, mas, embora já nos aproximássemos do verão, – que é a altura própria do calor – o tempo refrescou e, portanto, não há que confiar nele; frequentemente voltamos aos dias invernosos.
Queres que te diga até que ponto o tempo está incerto? Ainda não me atrevo à água fria e tenho que lhe adoçar a temperatura(Cf. a carta 53, 3.) “Aqui está” – dirás tu – “o que se chama não aguentar nem calor nem frio!”
É mesmo, caro Lucílio, já me basta acomodar-me ao frio próprio da idade, que não degela nem em pleno verão. E assim é que passo a maior parte do tempo metido em abafos.
Tenho que dar graças à velhice por me manter colado à cama. E porque não dar-lhe graças por isso? Assim, estou impossibilitado de fazer aquilo mesmo que a vontade me devia impedir de fazer. As minhas conversas são quase todas com os livros. Sempre que aparece uma carta tua tenho a sensação de estar na tua companhia e isso dá-me uma tal disposição de espírito que mais me parece estar a responder-te de viva voz do que por escrito. Quanto à questão que me pões, façamos como se estivéssemos conversando e analisemo-la em conjunto.
Perguntas-me se todo o bem é desejável. Nas tuas palavras: “Se suportar corajosamente a tortura, aguentar com valentia as chamas e encarar com paciência a doença é um bem, segue-se que estas três situações são desejáveis.
Ora eu não vejo nelas nada que mereça o nosso desejo. E sei de certeza absoluta que nunca ninguém cumpriu uma ação de graças por ter sido chicoteado, deformado pela gota ou alongado no cavalete.” Se tu, meu amigo, analisares com minúcia estes fatos, verás que neles existe algo de desejável.
Eu preferiria que a tortura me poupasse; mas se tiver de me submeter a ela desejarei fazê-lo com coragem, valor, e firmeza. Preferiria não me ver envolvido numa guerra, é evidente!
Mas se me visse envolvido desejaria suportar animosamente as feridas, a fome e tudo o mais que as agruras da guerra implicam. Não sou tão louco que me apetecesse estar doente, mas se a doença me atacar desejarei que o meu comportamento se não torne por isso incontrolado ou efeminado. Em suma, não são as circunstâncias adversas que são desejáveis, mas sim a virtude que nos permite ultrapassar essas circunstâncias adversas.
Alguns dos nossos entendem que a capacidade de tolerar com coragem todas estas adversidades não é em si desejável, embora naturalmente não seja de rejeitar. E isto porque o objeto dos nossos votos deve ser um bem puro, tranquilo e situado ao abrigo de todo o sofrimento.
A minha opinião é diferente. Em primeiro lugar porque não é possível que uma coisa seja simultaneamente boa e não desejável; depois, porque se a virtude é desejável e se não há bem algum sem virtude, segue-se logicamente que todo o bem é desejável; finalmente, porque (embora a tortura não seja desejável), é desejável a corajosa resistência à tortura!
Vejamos outra questão: não é verdade que a coragem é desejável? No entanto, ela não só despreza o perigo como até o atrai! O seu aspecto mais nobre e mais digno de admiração consiste em não recuar ante as chamas, em não evitar as feridas, por vezes mesmo não apenas em não esquivar os golpes como até em recebê-los no peito. Se a coragem é desejável, igualmente é desejável suportar com valentia a tortura, já que fazê-lo faz parte da ideia de coragem.
Discrimina com atenção, conforme já te disse e verás que não existem razões para te induzirem em erro. O que é desejável não é sofrer a tortura, mas sim o sofrê-la corajosamente: é neste “corajosamente” que consiste a virtude, e por isso é que eu o desejo!
“Mas quem formulou jamais semelhante desejo?”
Há certos desejos que se formulam abertamente, embora respeitem a questões particulares; outros há, porém, que estão implícitos, isto é, quando um só desejo contém em si vários outros. Por exemplo, eu desejo levar uma vida segundo a moral, mas uma vida regulada pela moral compõe-se de diversas ações: nela podemos encontrar a masmorra de Régulo, a ferida aberta por Catão com as próprias mãos, o desterro de Rutílio, o cálice de veneno que elevou Sócrates do cárcere até ao céu!
Por isso mesmo, ao formular o desejo de uma vida segundo a moral, eu formulei implicitamente todas aquelas características que fazem moral a vida.
Ó três, quatro vezes felizes aqueles a quem ante o olhar dos seus, sob os altos muros de Tróia coube em sorte morrer Vergilio, Aen., 1, 94-6.
Que diferença há entre desejar esta sorte a alguém ou confessar que ela é desejável?
Décio ofereceu a sua vida à República e, esporeando o cavalo, lançou-se no meio dos inimigos ao encontro da morte. Depois veio outro Décio que, rivalizando com o valor do pai, após pronunciar a fórmula ritual já tornada tradição de família, precipitou-se para o mais intenso da peleja; apenas receava que o sacrifício não fosse favoravelmente aceite pela divindade, mas não duvidava de que uma nobre morte fosse desejável.
Ainda hesitas em admitir que nada é superior a uma morte digna de memória, alcançada através da ação da virtude? Quando um homem sofre corajosamente a tortura, está pondo em ação todas as suas virtudes! Talvez uma delas esteja em ação mais direta ou seja mais evidente: a resistência.
Mas numa tal situação encontramos coragem, nas suas variantes de resistência, capacidade de sofrer, aceitação da dor; encontramos prudência, virtude indispensável à tomada de qualquer decisão, a qual nos convence a aguentar com o máximo de coragem o inevitável; encontramos firmeza, a qual nunca bate em retirada nem se deixa desviar dos seus propósitos ,pela força; encontramos, em suma, todo o indivisível cortejo das virtudes.
Tudo quanto fazemos segundo a moral, fazemo-lo por ação de uma virtude mas em unanimidade com todas elas; e aquilo que unanimemente todas as virtudes aprovam, ainda que aparentemente se deva a uma só, é, sem dúvida alguma, desejável.
Não irás pensar certamente que apenas é desejável aquilo que nos advem do prazer e do ócio, aquilo que acolhemos em nossa casa com as portas engalanadas?! Há certos bens cuja aparência é severa; há certos votos cuja realização se celebra não com grandes cerimónias gratulatórias, mas sim em atitude de adoração e profundo respeito.
Pensas tu que Régulo não estava desejoso de chegar a Cartago? Procura sentir dentro de ti o estado de alma de um grande homem, liberta-te por algum tempo das opiniões do vulgo; aplica todo o teu esforço à compreensão total da beleza e excelência de uma virtude cuja prática exige de nós, não incenso ou grinaldas, mas sim suor e sangue!
Detém-te a contemplar M. Catão no ato de levar ao peito sacrossanto as suas mãos irrepreensíveis a fim de abrir mais as feridas insuficientemente profundas! O que dirias tu a Catão num tal momento? “Tens toda a minha simpatia!”, ou “Lamento a tua infelicidade!”, ou antes: “Que sorte tens em agir assim!”?, Lembra-me neste momento o nosso Demétrio, que chama “mar morto” a uma vida passada em segurança, ao abrigo dos ataques da fortuna.
Carecer de motivos de exaltação, de esforço, carecer de tudo quanto, servindo de advertência e de estímulo, ponha à prova a nossa firmeza de ânimo, e, em contrapartida, amolecer num ócio imperturbado, isso não é tranquilidade, é paz podre!
O estóico Átalo costumava afirmar que preferiria ter a fortuna por inimiga do que por aduladora. “Sofro a tortura, mas com coragem: tanto melhor! Afronto a morte, mas com coragem: tanto melhor!” E se escutasses Epicuro, ouvi-lo-ias acrescentar: “Um autêntico prazer!”(1)
Por mim não qualificaria com tão fraco epíteto uma atitude de tal modo sublime e grave … Sou queimado, mas não vencido : não é altamente desejável uma tal situação? Não porque o fogo me queima, mas sim porque me não vence!
Não há nada que suplante em valor e beleza a virtude; e tudo quanto fazemos em obediência aos seus ditames é um bem, e é, portanto, desejável!
Passar Bem!
(1) Epicuro, fr. 601 Usener (cf. supra carta 66, 18).