Carta 65
O meu dia de ontem foi repartido entre mim e a falta de saúde: a parte da manhã coube-lhe a ela, de tarde pude dispor de mim próprio.
Para começar experimentei as minhas forças através da leitura; vendo que aguentavam, atrevi-me a exigir mais delas, ou melhor, a deixá-las à vontade. Escrevi alguma coisa, com mais cuidado mesmo do que é meu costume, quando luto com um assunto difícil em que não quero dar-me por vencido, até que apareceram uns amigos que me queriam obrigar a, doente como estava, não abusar de mim mesmo.
A escrita cedeu lugar à conversa, e é precisamente do problema ainda em litígio que eu te vou dar parte. Elegemos-te para nosso árbitro; vais encontrar mais trabalho do que esperas, pois a matéria em discussão apresenta-se sob três formas(1)
Como sabes, os nossos estóicos afirmam que na natureza há dois princípios dos quais tudo o mais deriva: a causa e a matéria (2). A matéria jaz inerte, apta a tomar todas as formas, mas imóvel para sempre se ninguém a trabalhar; a causa, porém, que é como quem diz, a razão, dá forma à matéria, transforma-a naquilo que quer, realiza a partir dela vários tipos de produtos.
É, portanto, necessário que haja um princípio do qual tudo deriva, um outro, que a cada coisa dê forma: este é a causa, aquele a matéria.
Toda a arte é imitação da natureza, pelo que se pode aplicar o que eu disse em sentido genérico às atividades próprias do homem. Uma estátua implica que haja uma matéria posta à disposição do artista, mas exige também um artista que dê forma a essa matéria.
Numa estátua, portanto, a matéria é o bronze, a causa é o escultor. Todas as outras coisas são regidas pela mesma condição, todas exigem algo capaz de tomar uma forma e alguém capaz de produzir essa forma.
Os estóicos são de opinião que a causa é apenas uma: o agente.
Aristóteles entende que a causa se pode considerar de três pontos de vista. Diz ele: “A primeira causa é a própria matéria, sem a qual nada pode ser produzido; a segunda é o artífice; a terceira é a forma imposta a cada objeto, por exemplo, a uma estátua.” A esta última chama Aristóteles εἶδος– “Mas a estas” – continua ele – “há que acrescentar uma quarta, que é a finalidade da obra acabada.”(3)
Já te vou explicar o que isto significa.
O bronze é a primeira causa da estátua, pois esta nunca poderia ter sido feita se não existisse algo capaz de ser fundido e moldado. A segunda causa é o artista, porquanto o bronze nunca tomaria a forma de estátua sem ser trabalhado por mãos hábeis. A terceira causa é a forma já que uma estátua não poderia ser rotulada de “doryphoros” ou de “diadumenos”(4) se não apresentasse expressamente as respectivas características. A quarta causa é a finalidade com que a estátua foi feita; se não houvesse uma finalidade não haveria estátua.
E o que se entende por finalidade? É o propósito que moveu o artista, o fim que procurou atingir: pode ser o dinheiro, se fez a estátua para a vender, a glória, se trabalhou para obter fama, o sentimento religioso, se a fez para a doar a um templo. Entre as causas de uma obra deve, portanto, figurar aquilo que a motivou, a menos que se entenda que não é causa da obra aquele elemento sem o qual ela nunca teria sido feita.
A estas causas Platão acrescenta uma quinta, o modelo, a que ele dá o nome de “ideia” (ιδέα)(5). O modelo é aquela forma que o artista procurou reproduzir quando levou a cabo o seu projeto.
É irrelevante se ele tem fora de si um modelo para o qual olhar, ou se apenas tem na mente um modelo por ele concebido. Os modelos de todas as coisas tem-nos a divindade dentro de si mesma, e igualmente abarca na sua mente quer a quantidade quer a modalidade de cada futuro objeto; a divindade está repleta daquelas figuras – imortais, imutáveis, infatigáveis a que Platão chama “as ideias”.
Assim, por exemplo, os homens vão morrendo, mas a humanidade em si, o modelo segundo o qual o homem é formado, permanece inalterável por entre o sofrimento e a morte dos homens.
Segundo Platão, são, portanto, cinco as causas: matéria
, agente
, forma
, modelo
, finalidade
; delas resulta o produto acabado. Assim numa estátua (já que usei este exemplo logo de início) a matéria é o bronze, o agente é o artista, a forma é o que o artista pretende . representar, o modelo é a ideia geral que ele deseja imitar, a finalidade é o propósito que teve em vista; o produto resultante destas causas é a própria estátua.
Segundo Platão o universo igualmente deriva destas causas. Há um agente – a divindade; uma matéria-prima – a matéria propriamente dita; uma forma, que é a disposição ordenada do rnundo tal como o contemplamos; um modelo que é a grandiosidade e beleza do universo tal como a divindade a concebeu e realizou; uma finalidade – o propósito da criação.
Se queres saber qual o propósito da divindade, dir-te-ei: a bondade, pois é com inteira razão que Platão afirma: “O motivo por que a divindade criou o mundo foi a sua bondade; dada a sua bondade, tudo o que é bom é digno do seu apreço; por isso criou o mundo tão bom quanto lhe foi possível. “(6)
Diz agora de tua justiça qual a opinião que te parece a mais verosímil, não a mais verdadeira, pois esta questão está tão acima de nós como a própria verdade.
Esta multidão de causas postulada por Aristóteles e Platão ou é demasiado vasta, ou é demasiado restrita.
De fato, se eles apontam como causa tudo o que, uma vez retirado, torna impossível a obra, a sua enumeração é restrita. Haverá que pôr entre as causas o tempo, pois nada se pode fazer senão no tempo. Haverá que pôr o espaço, pois se não houver um lugar onde qualquer coisa surja, nada surgirá. Haverá que pôr o movimento, uma vez que sem este nada nasce e nada morre; não há arte alguma, não há transformação alguma sem movimento.
O que nós procuramos, porém, é a causa primeira, a causa em geral. Esta causa deve ser simples pois a matéria também é simples. A causa que procuramos apenas pode ser esta: a razão criadora, que o mesmo é dizer, a divindade. Todas essas outras que foram enumeradas não são causas múltiplas e individuais: estão dependentes de uma única, a causa eficiente.
Diz-se que a forma é uma causa! Mas ela é dada à obra pelo artista: é uma parte da causa, não a causa. Também o modelo (ideia) não é causa, mas sim um ínstrumento necessário à causa. O modelo é tão necessário ao artista como o cinzel ou como a lima: o artista precisa deles para trabalhar, mas nem por isso eles são partes da sua arte, nem, portanto, da causa.
Outros dirão: “A finalidade do artista, aquilo que o motivou a realizar a obra, essa é que é a causa.” Admito que seja causa, mas não causa eficiente, e sim, apenas, interveniente. E causas deste tipo são incontáveis; nós procuramos, porém, a causa em geral.
Quando os dois pensadores afirmam que o universo, enquanto obra total e consumada, é uma causa, não demonstraram a sua habitual perspicácia; na realidade, a obra e a causa da obra estão longe de ser a mesma coisa.
Expõe a tua opinião ou então, o que será mais fácil para ti neste tipo de matérias, diz que não és capaz e manda-me prosseguir a mim. Dirás tu:
“Mas que prazer é o teu em perder tempo com tais questiúnculas que te não libertam de nenhuma paixão nem de nenhum desejo?”
A verdade é que eu me ocupo de temas mais válidos (7), que trato daquilo que me tranquiliza o ânimo, que me observo a mim mesmo antes de observar o universo. Mas mesmo nestas “questiúnculas” eu não perco tempo, como tu julgas. Se nós não as dividirmos até ao infinito ao ponto de tombar numa inútil subtileza, elas elevam e sublimam o espírito, o qual, como que oprimido por um pesado fardo, deseja libertar-se e regressar aos elementos de que já fez parte.
De fato este nosso corpo é para o espírito uma carga e um tormento; sob o seu peso o espírito tortura-se, está aprisionado, a menos que dele se aproxime a filosofia para o incitar a alçar-se à contemplação da natureza, a trocar o mundo terreno pelo mundo divino. Esta a liberdade do espírito, estes os seus voos: subtrair -se ocasionalmente à prisão e ir refazer as forças no firmamento!
Tal qual como os operanos especializados num trabalho minucioso e fatigante para os olhos, quer pela atenção requerida, quer pela luz deficiente e fraca em que laboram, vêm de vez em quando à rua e, passeando por qualquer lugar adequado ao lazer, deleitam os olhos com a luz do dia, assim também o espírito, encerrado nesta morada obscura e triste, procura, sempre que pode, o ar livre e repousa através da contemplação da natureza.
Quer o filósofo, quer o candidato a filósofo, estão colados ao seu corpo, mas a melhor parte de si mesmo está liberta e dirige as suas meditações para as alturas. Tal como um soldado arregimentado, considera a própria vida como um serviço a cumprir; o seu carácter é tal que não sente pela vida nem amor nem ódio, e sofre a sua condição de mortal embora sabendo que existe uma existência superior.
Pretendes proibir-me a contemplação da natureza e afastar-me do todo para me limitares a uma parte? Então eu não hei-de querer saber como começou todo o universo, quem deu forma a cada coisa, quem separou todos os seres antes misturados indistintamente no meio da matéria inerte? Não hei-de querer saber quem foi o artífice deste mundo, qual o processo por que tamanha magnitude chegou a ser regulada pelas leis do cosmos? Quem reuniu o que estava disperso e distinguiu o que estava amalgamado, quem deu rosto à matéria que jazia informe?
Donde vem toda esta luz? É fogo, ou algo mais luminoso do que o fogo? Eu não hei-de investigar estas questões? Hei-de ignorar donde provim, se o mundo apenas uma vez o vejo ou se nascerei mais vezes? E para onde irei depois? Qual o lugar que acolherá a minha alma liberta das leis da humana servidão? Queres proibir-me o acesso ao firmamento, por outras palavras, pretendes que eu viva com os olhos no chão? (8)
Eu sou algo mais, eu nasci para algo mais do que para ser escravo do meu corpo, a quem não tenho em maior conta do que a uma cadeia em torno à minha liberdade. Este corpo, oponho-o como barreira aos golpes da fortuna, e não consinto que através dele algum golpe chegue até mim.
Se algo em mim pode sofrer ataques é o corpo; mas neste desconfortável domicílio habita um espírito livre. Nunca esta carne me compelirá ao medo, ou a alguma hipocrisia indigna de um homem de bem; nunca serei levado a mentir por atenção a este frágil corpo. Quando chegar a altura romperei a minha ligação com ele. E mesmo agora, enquanto estamos colados um ao outro, não somos companheiros com direitos iguais: o espírito arroga para si todos os direitos. O desprezo pelo próprio corpo é a certeza da liberdade.
Voltemos, porém, ao assunto. À nossa liberdade importa imenso investigar as questões acima referidas, porquanto tudo no mundo consta de matéria e de espírito divino. A divindade é que regula tudo, e tudo a rodeia e segue como a um guia ou um chefe. O agente; ou seja, a divindade, é mais poderoso e válido do que a matéria submetida à ação da divindade. Ora lugar idêntico ao que a divindade ocupa no universo, ocupa no homem o espírito; o que no universo é a matéria, é em nós o corpo. Sirva, portanto, o inferior ao superior; sejamos fortes diante do acaso; não recebemos as injúrias, as feridas, as cadeias, a miséria. O que é a morte? Ou é termo, ou é passagem (9)
Não receio chegar ao termo, pois ficarei no mesmo estado de quem nunca nasceu; (10) também não receio a passagem, pois em lugar algum estarei tão limitado como aqui!
Passar Bem!👍
(1) Isto é, são sucessivamente discutidas as teses do estoicismo (§§ 2-3 ), de Aristóteles (§§ 4-6) e de Platão (§§ 7-10) sobre o problema das causas.
(2) V. S. V. F., I, 85 (=II, 300), II, 310.
(3) Aristóteles, Metafisica, IV, 1013 a 24-35. – Sobre o εἶδος(eidos) cf. supra carta 58, 20 ss.
(4) Representações plásticas de um homem segurando uma lança (δopίφορος), ou com a cabeça cingida por uma fita ou diadema (διαδούμενος) .
(5) Cf. supra carta 58, 19.
(6) Cf. Platão, Timeu, 29 d-e.
(7) passo corrupto, objeto de variadas propostas de saneamento. A tradução . corresponde à conjectura potiora de Hense (em vez do absurdo peiora dos mss.).
(8)Sobre a importância que esta classe de problemas revestia para Séneca veja-se o prefácio ao livro I das Naturales Quaestiones.
(9) Não deverá ver-se aqui uma indecisão de Séneca ou um mal entendido eclectismo, mas apenas a obediência a um princípio da pedagogia estóica que, desde Crisipo, aconselhava a não contrariar frontalmente as convicções prévias dos discípulos, mas antes a, partindo destas, e reinterpretando-as, levá-los gradualmente às posições da Escola (v. I. Hadot, Seneca und die griechisch-romische Trttdition der Seelenleitung, Berlin, 1965, p. 83).
(10) A mesma ideia quase pelas mesmas palavras nas Troianas, 407-8: “Queres saber onde ficarás depois da morre? Lá onde está o que ainda não nasceu!”