Carta 64

Ontem estiveste na nossa companhia. “Apenas ontem?” Não te queixes: repara que eu escrevi “na nossa companhia”, o que significa que na minha estás tu sempre!

Vieram visitar-me alguns amigos, e aumentou a fumaça na minha chaminé: não daquelas fumaradas que se evolam da cozinha dos ricaços para grande susto dos bombeiros, mas uma fumaça modesta apenas para dizer que havia convidados em casa.

A conversa foi variada, como é habitual quando há amigos a jantar, passando de assunto para assunto sem tratar exaustivamente nenhuma questão. A terminar leu-se um livro de Quinto Sêxtio, o pai – grande homem, podes crer, e estóico, embora ele o negue.

Grandes deuses, que energia, que força de ânimo este homem tem! O mesmo não poderás dizer de todos os filósofos: alguns há, e de nomeada, cujos escritos não têm qualquer vigor. Propõem teses, discutem, envolvem-se em sofismas, mas não transmitem energia porque eles próprios a não têm.

Mas ao ler Sêxtio dá vontade de dizer:

“Que vida, que vigor, que liberdade! Este homem está para além da condição humana; ao terminar a leitura vou cheio de intensa confiança em mim mesmo!”

Aqui tens o estado de espírito com que fico ao lê-lo, apetece-me desafiar todas as eventualidades , apetece-me gritar:

“Porque esperas, fortuna? Avança, estou pronto para o combate!”

meu ânimo fica idêntico ao do homem que pretende pôr-se à prova , que busca demonstrar a sua coragem

e anseia por que entre a caça inofensiva surja, escumante, um javali, ou que um /uivo leão desça da montanha. Vergílio, Aen., IV, 158-9.

Apetece-me encontrar um obstáculo a vencer, uma dificuldade a superar valorosamente. Sêxtio, efetivamente, tem uma qualidade extraordinária: ser capaz de mostrar toda a grandeza que há na felicidade mas não tirar toda a esperança de alcançá-la.

Lendo-o, saberás que a felicidade autêntica se situa a um nível elevadíssimo, mas a que podemos aceder pelo exercício da vontade.

A própria virtude ser-te-á do maior auxílio, revelando-se a ti como objeto tanto de contemplação como de esperança. Eu por mim costumo dedicar bastante tempo à contemplação da sabedoria; olho-a com os mesmos olhos de embevecimento com que contemplo de vez em quando o universo, isto é, sempre como se fosse a primeira vez.

Venero por igual as descobertas da filosofia e os seus descobridores; abeiro-me delas feliz como de uma herança de muitas gerações. Foi para mim que tais descobertas foram feitas, para mim que elas foram elaboradas.

Façamos, pois, como o bom chefe de família, e aumentemos o património que nos foi transmitido! Possa a herança que vou transmitir aos vindouros ser maior do que a que recebi. Há muito trabalho ainda a fazer, haverá sempre muito; nem mesmo a alguém que nasça daqui a mil séculos faltará ocasião para acrescentar ainda esse património.

Mas, admitindo que os antigos já descobriram tudo, no uso, no conhecimento, na organização dessas descobertas haverá ainda assim uma parte de novidade. Imagina, por exemplo, que nos foi transmitida a receita para a cufa das doenças dos olhos: não será necessário procurar novas fórmulas, mas haverá que adequar os medicamentos conhecidos à doença e à situação concreta.

Este remédio trata a vista inflamada; aquele faz diminuir o inchaço das pálpebras; este outro evita que os olhos purguem subitamente; aquele além aumenta a acuidade da visão: será necessário preparar os ingredientesescolher o momento oportuno para a aplicação, determinar a posologia em função de cada caso.

Ora os antigos inventaram os remédios adequados aos males da alma, mas cabe-nos a nós averiguar o modo e a ocasião em que eles devem ser aplicados. Os nossos predecessores fizeram muito, mas não fizeram tudo. Devemos dar-lhes a nossa admiração, prestar-lhes culto como se fossem deuses!

Porque não hei-de eu ter em minha casa os bustos desses grandes homens como formas de estimular a alma? Porque não celebrar os seus aniversários? Porque não evocá-los continuamente, como prova do respeito que lhes dedico?

A mesma veneração que devo aos meus mestres devo também a esses grandes mestres do género humano, qual fonte donde brotou a iniciação ao supremo bem!

Se eu deparar com um cônsul ou um pretor prestar-lhes-ei as mostras de respeito que é usual prestar aos magistrados: saltarei do cavalo, descobrirei a cabeça, ceder-lhes-ei a passagem.

E quanto aos dois Catões, a Lélio-o-Sábio, a Sócrates, e também a Platão, a Zenão, a Cleantes – ser-me-á possível pensar neles sem as maiores provas de respeito e admiração?

A todos estes homens eu venero, e sinto-me pleno de entusiasmo sempre que penso em tão grandiosos nomes!

Passar Bem!

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