Carta 56

Eu morra se o silĂȘncio Ă© tĂŁo necessĂĄrio como parece a quem se entrega ao estudo! Aqui estou eu agora, rodeado de barulho por todos os lados, pois estou vivendo por cima de um balneĂĄrio.

Imagina toda a casta de ruĂ­dos capazes de porem os ouvidos no desespero: se sĂŁo os fortalhaços a treinar-se erguendo nas mĂŁos pesados halteres de chumbo, quando nĂŁo conseguem ou fingem nĂŁo conseguir levantĂĄ-los, sĂł oiço gemidos; se sustĂȘm a respiração e depois voltam a respirar, entĂŁo sĂŁo assobios, Ă© um arfar ofegante; se me calha apanhar algum fracalhote que nĂŁo deseja mais do que uma vulgar massagem, entĂŁo chega-me aos ouvidos o som das mĂŁos a bater nos ombros um som que varia conforme a mĂŁo assenta plana ou cĂŽncava.

Mas se surge um jogador de bola que se ponha a contar os pontos marcados, então é o fim! Junta a tudo isto o barulho dos arruaceiros, dos ladrÔes apanhados em flagrante, dos que gostam de se ouvir a cantar no banho, dos que saltam para a piscina com um chapão de todo o tamanho!

E para alĂ©m destes tipos, que, pelo menos, tĂȘm uma voz normal, imagina agora o depilador fazendo ouvir de vez em quando, para atrair as atençÔes, uma voz efeminada e guinchenta e sĂł se calando quando encontra axilas para depilar, altura em que quem grita Ă© o paciente.

E toca a consumir ainda todo o tipo de pregÔes: o vendedor de bebidas, o salsicheiro, o pasteleiro, e todos os negociantes de comes e bebes apregoando a sua mercadoria cada um com uma entoação própria!

“Tens de ser de ferro” dirĂĄs tu – “para manteres o cĂ©rebro a funcionar no meio de ruĂ­dos tĂŁo diversos e contrastantes.

O nosso amigo Crisipo sentia-se quase morrer se encontrava muita gente a quem cumprimentar!” Pois eu, juro-te, não me preocupa mais esta barulhaça do que o rumor das ondas ou das cascatas, embora saiba que houve um povo que mudou a localização da sua cidade só por não conseguir suportar o ruído das cataratas do Nilo!(1)

Em meu entender perturba mais ouvir palavras com nexo do que um rumor indistinto, pois aquelas atraem a nossa atenção, enquanto este apenas nos enche e agride os ouvidos. Entre os tipos de ruído que me podem rodear sem causar perturbação incluo ainda os carros a passar, o operårio que trabalha no meu imóvel, o marceneiro da casa ao lado, o vendedor de instrumentos que experimenta junto à fonte do repuxo (2) as trombetas e as flautas, não propriamente tocando, mas apenas soprando!

De resto incomoda-me mais um ruído intermitente do que um ruído contínuo. Sinto-me mesmo jå tão endurecido contra o ruído que até seria capaz de suportar a voz sobremaneira irritante do comitre marcando o ritmo aos remadores.

É que eu obrigo o meu espírito a conservar-se atento a si mesmo sem se deixar aliciar pelo exterior. Pode haver lá fora todo o ruído que se queira, contando que dentro do meu espírito não haja conflitos, não haja luta entre a ambição e o temor, não haja discussão entre a avareza e a dissipação, com uma delas a procurar impor-se à outra!
Que interessa, afinal, que Ă  nossa volta reine o silĂȘncio se dentro de nĂłs se agitarem as paixĂ”es ?

“Tudo repousava em paz na quietude da noite.” (3)

É falso: nenhuma quietude Ă© pacĂ­fica senĂŁo quando assenta na razĂŁo. A noite realça a doença, nĂŁo a destrĂłi, limita-se a substituir as nossas preocupaçÔes. Na hora do descanso, a insĂłnia Ă© tĂŁo agitada quanto agitado foi o dia; somente a consciĂȘncia moral proporciona uma verdadeira tranquilidade.

Observa aquele homem que procura adormecer no silĂȘncio da sua vasta casa: para que som algum lhe fira os ouvidos todos os escravos se conservam calados, ninguĂ©m se aproxima dele senĂŁo em bicos de pĂ©s.

Mesmo assim ele revolve-se no leito para um lado e para outro, mal conseguindo conciliar o sono no meio dos seus cuidados. Até se queixa de ouvir ruídos que nunca ouviu. Qual julgas tu que é o motivo disto? Foi o seu espírito que o atordoou!

É o espĂ­rito que carece de ser acalmado, Ă© a sua perturbação que exige ser dominada. O espĂ­rito nĂŁo estarĂĄ sossegado sĂł por o corpo estar em repouso; o prĂłprio descanso Ă© frequentemente cheio de inquietude.

Até mesmo nós nos temos de entusiasmar com os atos a praticar, nos temos de entreter com a meditação nas atividades justas sempre que o repouso se mostra incapaz de nos conservar quietos.

Os grandes generais, quando vĂȘem o soldado renitente em obedecer, forçam a sua impaciĂȘncia impondo-lhe qualquer trabalho, mantendo-o sempre em estado de alerta: controlados com severidade, os soldados nĂŁo podem permitir-se quaisquer brincadeiras; nĂŁo hĂĄ, de fato, melhor remĂ©dio contra os vĂ­cios da inatividade do que mantĂȘ-los ativos.

Muitas vezes damos a impressĂŁo de querermos retirar-nos por tĂ©dio da polĂ­tica ou por saturação de algum cargo difĂ­cil ou ingrato; mas no remanso em que o temor ou a fadiga nos lançou nĂŁo tarda que a ambição de uma carreira pĂșblica recrudesça.

É que a ambição nĂŁo foi cortada pela raiz, apenas se cansou, ou se irritou por as coisas nĂŁo correrem tĂŁo bem quanto queria. E o mesmo Ă© vĂĄlido no que concerne ao luxo: de vez em quando parece ser posto de lado, mas logo começa a aliciar os pretensos adeptos da frugalidade que, em plena prĂĄtica da temperança, buscam os prazeres (nĂŁo condenados de vez, mas apenas momentaneamente abandonados) e com tanto mais ardor quanto o fazem disfarçadamente.

Os vícios, é um fato, são menos graves quando claramente admitidos, tal como as doenças, as quais estão mais perto de serem curadas quando passam do estado de incubação à plena manifestação da sua força.

Fica sabendo que a avareza, a ambição e todos os demais males que afligem o espírito humano são tanto mais molestas quanto mais fingem ocultar-se atrås de uma cura simulada.

NĂłs parecemos retirados da polĂ­tica sem o estarmos de fato. Quando estamos de boa-fĂ©, quando tocamos de fato a retirar, quando desprezamos deveras tudo quanto Ă© ilusĂłrio, entĂŁo, conforme acima disse, nada nos poderĂĄ tentar, nĂŁo hĂĄ clamor algum – de homens ou de pĂĄssaros – que possa interromper os nossos pensamentos justos, firmes, perfeitamente seguros.

Quando uma simples palavra, um concurso de circunstĂąncias nos alicia – isso sĂł prova que possuimos um carĂĄter instĂĄvel, incapaz de ser senhor de si mesmo; mantemos no nosso Ă­ntimo alguma preocupação, algum medo irreal que nos torna permanentemente inquietos, como Eneias neste passo de VergĂ­lio:

E a mim, ainda hĂĄ pouco imperturbĂĄvel entre os dardos que me lançavam, entre os gregos que me cercavam – agora o mais leve sopro me assusta, qualquer som me perturba, inquieto, receoso quer pelo filho a meu lado quer pelo pai que levo aos ombros!(VergĂ­lio, Aen., II, 726-9.)

Na primeira situação o herói comporta-se como um såbio, a quem não assustam o arremesso dos dardos, o choque das armas de um denso corpo de exército, o fragor de uma cidade caindo em ruínas; no segundo caso mostra-se um homem vulgar, receoso pela sua sorte e tremendo ao menor ruído, um homem a quem a mínima voz, tomando as proporçÔes de enorme barulho, assusta, a quem o mais leve movimento faz perder a coragem. Os fardos que tem a seu cargo fazem dele um cobarde!

Os afortunados aos olhos do vulgo, que levam consigo aos ombros imensos bens – qualquer deles tu verĂĄs “receoso por quem tem ao lado, por quem transporta aos ombros”! SĂł poderĂĄs considerar-te como senhor de ti mesmo quando nenhum clamor te afetar, nenhuma voz, sedutora ou ameaçadora, te perturbar, nenhuma ilusĂŁo te rodear de ruĂ­dos sem sentido.

“Como Ă© isso? EntĂŁo nĂŁo Ă© muito melhor, pelo do ruĂ­do?”

Claro que Ă©, e por isso mesmo nĂŁo tarda que eu me vĂĄ embora daqui. Apenas pretendi experimentar-me, treinar-me; mas nĂŁo vale a pena submeter-me a esta tortura mais tempo, quando sabemos como Ulisses congeminou para os seus homens um antĂ­doto tĂŁo eficaz
 atĂ© contra as Sereias!

Passar Bem!

(1)Cf. SĂ©neca, Naturales Quaestiones, IV, 2, 5: “Houve um povo aĂ­ [= junto Ă s cataratas do Nilo] estabelecido pelos Persas que ficou com os ouvidos atordoados pelo contĂ­nuo ruĂ­do, e por isso decidiu mudar-se para outro local mais tranquilo.”

(2) A “fonte do repuxo”, Meta sudans, ficava em Roma, perco da Via Sacra; parece ter-se tratado de uma fonte ornada com um cone de pedra (meta: as colunas cónicas que, no circo, marcavam os limites para as corridas de carros) donde brotava água (sudans),

(3) Varrão Atacino, carm,, fr_ 8 MoreL

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