Carta 42
Então esse cavalheiro conseguiu convencer-te de que era um homem de bem?! Olha que um homem de bem não é coisa que surja e se reconheça por tal assim tão depressa! E sabes o que eu entendo aqui por “homem de bem”? Apenas o de segunda categoria, porque o de primeira é como a fénix, que só aparece uma em quinhentos anos.
Não é de espantar que as coisas de fato grandes, surjam com tão grandes intervalos: as mesquinhas, as que se destinam ao vulgo, essas fá-las a fortuna nascer continuamente, as verdadeiramente ádmiráveis, pelo contrário, notabilizam-se pela sua própria raridade.
Esse indivíduo ainda está muito distante de ser o que apregoa. Se ele soubesse o que é um homem de bem não se julgaria já como tal, e talvez até perdesse a esperança de vir a sê-lo.
“Mas ele tem má opinião sobre as pessoas más”.
O mesmo fazem as pessoas más: nenhum castigo maior atinge os perversos do que o desagrado que inspiram a si mesmos. “Ele odeia aqueles que usam imoderadamente de uma súbita situação de grande poderio”.
Ele fará o mesmo quando tiver um poderio idêntico. Muitos há que, por fraqueza, parecem não ter vícios; mas se ganharem confiança nas próprias forças, os seus vícios não serão menos ousados do que os dos outros, já postos em evidência por circunstâncias favoráveis.
Ainda carecem de meios para dar largas à perversidade. Semelhantemente, uma serpente, mesmo venenosa, pode ser agarrada enquanto entorpecida pelo frio: não que ela careça de veneno, mas porque está em letargia. A muitos, para que a crueldade, a ambição, a luxúria atinja o nível dos piores, apenas falta o favor da fortuna. Verás que outra coisa eles não desejam se lhes deres o poder de fazer quanto querem.
Lembras-te daquele outro indivíduo que tu garantias ser-te inteiramente dedicado? Eu disse-te que ele não era de confiança, que era instável, que tu o seguravas, não pelo pé, mas por uma asa; enganei-me, apenas o seguravas por uma pena, e ele deixou-ta na mão e fugiu. Estás lembrado das partidas que te fez em seguida, de tudo o que tentou contra ti e acabou por cair sobre ele próprio. Não entendia que, colocando os outros em perigo, ficava ele próprio em perigo. Não pensava como eram dificultosas as suas pretensões, mesmo que não fossem supérfluas.
Por isso mesmo devemos verificar como naquelas pretensões que com enorme esforço pretendemos realizar, ou não existe vantagem alguma ou há sobretudo desvantagens: umas são supérfluas, outras não merecem tanto esforço.
Nós, porém, não olhamos até ao fundo e por isso nos parece de graça o que na realidade custa um altíssimo preço.
Por aqui se vê bem a nossa estupidez: apenas julgamos comprar aquilo que nos custa dinheiro, enquanto consideramos gratuito o que pagamos com a nossa própria pessoa.
Coisas que não quereríamos comprar se em troca devêssemos dar a nossa casa, ou uma quinta de recreio, ou de rendimento, estamos inteiramente dispostos a obtê-las a troco de ansiedades e de perigos, para tal sacrificando a honra, a liberdade, o tempo.
A tal ponto é verdade que a nada damos menos valor do que a nós próprios!
Façamos, portanto, em todas as nossas decisões e atos, o mesmo que fazemos ao abordar qualquer vendedor: perguntemos o preço da mercadoria que desejamos. Frequentemente pagamos ao mais alto preço algo por que nada deveríamos dar.
Posso indicar-te muitos bens cuja aquisição, mesmo por oferta, nos custa a liberdade : seríamos donos de nós próprios se não fôssemos possuidores de tais bens.
Deves meditar no que te digo, quer se trate de lucros quer de despesas.
“Este objeto vai estragar-se.”
Ora, é uma coisa exterior; tão facilmente passarás sem ela como passaste antes de a ter. Se tiveste esse objeto bastante tempo, perde-lo depois de saciado; se pouco tempo, perde-lo antes de te habituares a ele. “Ganharás menos dinheiro.” E menos preocupações, também. “Será menor o teu crédito.” Igualmente será menor a inveja.
Atenta em todos esses pretensos bens que nos dão a volta ao juízo e cuja perda nos ocasiona imensas lágrimas: verás que não somos afetados por nenhum prejuízo autêntico, mas apenas pela ideia de um prejuízo. É uma perda que não sentimos, apenas imaginamos.
Quem é dono de si próprio não pode perder nada.
Mas quantos são os que sabem ser donos de si próprios?!
Passar bem!