Carta 41
Ă uma empresa excelente e salutar a tua, se de fato, conforme me escreves, continuas a avançar rumo Ă sabedoria, a essa sabedoria que, por estar ao teu alcance obtĂȘ-la, seria estupidez ir suplicar aos templos.
Não é preciso elevar as mãos ao céu nem pedir ao ministro do culto que nos deixe formular votos ao ouvido da eståtua do deus, como se assim nos fosse mais fåcil sermos atendidos: a divindade estå perto de ti, estå contigo, estå dentro de ti!
Ă verdade, LucĂlio, dentro de nĂłs reside um espĂrito divino que observa e rege os nossos atos, bons e maus; e conforme for por nĂłs tratado assim ele prĂłprio nos trata. Sem a divindade ninguĂ©m pode ser um homem de bem; ou serĂĄ que alguĂ©m pode elevar-se acima da fortuna sem auxĂlio divino?
As decisÔes grandiosas e justas, é a divindade que as inspira. Em todo o homem de bem,
qual seja o deus, ignora-se, mas existe um deus VergĂlio, Aen., VIII, 352.
Se penetrares num bosque cheio de velhas ĂĄrvores, de altura fora do comum e tais que a densidade dos ramos entrelaçados uns nos outros oculta a vista do cĂ©u, a prĂłpria grandeza do arvoredo, a solidĂŁo do lugar, a visĂŁo magnĂfica dessa sombra tĂŁo densa e contĂnua no meio da planura, tudo te farĂĄ sentir a presença divina.
Se vires uma montanha como que suspensa sobre uma caverna escavada na rocha, nĂŁo pela mĂŁo do homem, mas roĂda por causas naturais atĂ© formar um enorme espaço, a tua alma serĂĄ atingida por uma certa aura de religioso mistĂ©rio.
NĂłs rodeamos de veneração as nascentes dos grandes rios; a irrupção sĂșbita de um grande caudal brotando das entranhas da terra Ă© assinalada por altares; sĂŁo objeto de culto as fontes de ĂĄgua termal; a opacidade ou a profundidade imensa de certos lagos deram-lhes carĂĄter sagrado.
Se vires um homem intrĂ©pido no meio do perigo, insensĂvel aos desejos vulgares, feliz no meio da adversidade, tranquilo em plena procela, contemplando os outros homens do alto, olhando os deuses de igual para igual – acaso nĂŁo sentirĂĄs por um tal homem uma onda de veneração ?
NĂŁo dirĂĄs: âHĂĄ aqui algo de superior, de demasiado elevado para poder considerar-se equivalente ao miserĂĄvel corpo em que estĂĄ encerrado!â? Sobre esse homem desceu uma força divina; a sua alma sublime, com perfeito domĂnio sobre si, que passa pelas coisas sem descer ao seu nĂvel, que se ri dos temores e dos desejos vulgares, Ă© uma alma movida por uma energia celeste.
Uma alma desta natureza nĂŁo pode perdurar sem auxĂlio divino; e por isso mesmo pertence, pela sua parte mais sublime, ao lugar donde proveio.
Os raios do sol atingem, é certo, a terra, mas estão no lugar donde emanam; do mesmo modo essa alma excelsa e divina, descida até nós para nos fazer conhecer de mais perto a divindade, embora estando na nossa companhia, mantém-se ligada às suas origens.
Emanação celeste, é para o céu que olha e se dirige, e estå entre nós sabendo que na realidade paira acima de nós. O que caracteriza então esta alma? O fato de não brilhar senão graças aos seus bens próprios.
Que hĂĄ de mais estulto do que admirar num homem aquilo que lhe Ă© exterior?
Onde hå maior loucura do que na admiração por coisas que, de um momento para o outro, podem mudar de proprietårio? Um cavalo não é melhor por ter um freio de ouro. Não é similar a atitude do leão que entra na arena de juba dourada, jå cansado pelos tratos que levou até submeter-se à imposição de ornamentos, e a do leão sem ornatos, mas conservando intacto o seu vigor.
Este surge cheio de impetuosa violĂȘncia, tal qual como a natureza o quis, belo na sua bravura, sem outro ornamento para alĂ©m do terror que inspira, bem superior ao outro leĂŁo, amolecido e coberto de folhas douradas! NinguĂ©m deve vangloriar-se senĂŁo do que lhe pertence.
O que gostamos na videira Ă© de ver-lhe os sarmentos carregados de fruto, Ă© vĂȘ-la fazer tombar as estacas em que se enrola sob o peso dos cachos; ou serĂĄ que alguĂ©m apreciaria mais uma videira de que pendessem uvas de ouro e folhas de ouro? A virtude prĂłpria da videira Ă© a fecundidade; similarmente, no homem o que devemos admirar Ă© aquilo que lhe Ă© peculiar.
AlguĂ©m possui um belo grupo de escravos, uma casa magnĂfica, vastas terras de cultura, abundante capital a render: nada disto estĂĄ nele prĂłprio,mas apenas Ă sua volta.
No homem, enalteçamos sĂł aquilo que se lhe nĂŁo pode tirar, nem dar, aquilo que Ă© especĂfico do homem. Queres saber o que Ă©? Ă a alma, e, na alma, uma razĂŁo perfeita (1)
O homem Ă©, de fato, um animal possuidor de razĂŁo; por conseguinte, se um homem consegue a realização do fim para que nasceu, o seu bem especĂfico atinge a consumação. A razĂŁo nĂŁo exige do homem mais do que esta coisa facĂlima: viver segundo a sua prĂłpria natureza! O que torna este objetivo difĂcil de atingir Ă© a 1oucura generalizada que nos leva a empurrarmo-nos uns aos outros na direção do vĂcio. E como reconduzir ao caminho da salvação homens a quem ninguĂ©m consegue deter, e a quem o vulgo ainda mais acicata? âŠ
(1)Â Ratio perfecta: a razĂŁo levada ao mĂĄximo das suas potencialidades, identificando-se com a âvirtudeâ.
Passar Bem!