Carta 39

Descansa que hei-de escrever um tratado de filosofia, bem sistematizado e sintetizado, conforme tu me pedes. Em todo o caso vê se não te será mais útil continuar com o nosso método habitual em vez de empregar estes volumes a que agora se chama vulgarmente “manuais” e a que antigamente, quando ainda se falava latim, se dava o nome de “compêndios”.

O primeiro método é sobretudo indispensável a quem está em fase de aprendizagem, o segundo, a quem já conhece a matéria, porquanto aquele dá os ensinamentos, este apenas fornece os tópicos. De qualquer modo encher-te-ei de textos segundo ambos os métodos. E tu não me reclames este ou aquele ponto: quem recorre a um perito é porque não é perito!

Em suma, eu escreverei tudo o que pretendes, mas cá à minha maneira; entretanto tens à tua disposição muitos autores, cujos escritos, aliás, não sei até que ponto estão bem sistematizados.

Pega no catálogo dos filósofos: não será preciso mais para te entusiasmar, vendo quantos homens andaram a trabalhar em teu proveito. Desejarás certamente ocupar um lugar tu próprio nessa lista, pois o que há de melhor numa alma nobre é deixar-se tentar por uma atividade virtuosa.

Nenhum homem de espírito elevado sente atração por ocupações vis e abjetas; em contrapartida, a contemplação da verdadeira grandeza atrai e eleva até si.

A chama ergue-se na vertical, incapaz de manter-se rasteira, de deixar-se abaixar, tanto como é incapaz de estar parada; do mesmo modo o nosso espírito está sempre em movimento, e é mesmo tanto mais ágil e ardente quanto mais nobre for.

Feliz daquele que orientou esse movimento natural no sentido da virtude: com isso pôs-se definitivamente a salvo dos ataques da fortuna e obteve o meio de moderar a prosperidade, aliviar a adversidade e menosprezar aquilo que o comum dos mortais admira.

Uma grande alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se tornam nocivos pelo próprio fato de serem supérfluos. É assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância de grão não chega a amadurecer.

O mesmo ocorre com as almas corroídas por um bem estar desmesurado, do qual usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias.

Nenhum inimigo inflingiu a alguém golpes tão duros como aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos próprios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação, a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a consequência dos seus atos.

Não é sem razão, aliás, que uma tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os limites naturais descamba necessariamente na desmesura. A necessidade natural tem o seu termo próprio, enquanto as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhecem limitações.

A utilidade serve de medida ao que é indispensável; mas por que padrão aferir o que é supérfluo? Por conseguinte, muitos afundam-se em prazeres sem os quais, uma vez transformados em hábito, já não podem passar; são estes os mais deploráveis de todos, pois se deixaram chegar a um ponto tal em que se lhes tornou indispensável uma coisa que começou por ser apenas supérflua.

Em vez de os desfrutar, tornam-se escravos do prazer; e, para cúmulo da desgraça, acabam por amar aquilo mesmo que os torna desgraçados.

Atinge-se assim o cume da infelicidade: a degradação torna-se, de prazer, em condição natural; quando os vícios se transformam em hábito deixa de ser possível a aplicação de qualquer remédio.

Passar Bem!

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