Estou reconhecendo o meu Lucílio: já começa a mostrar-se tal como prometia vir a ser. Prossegue com essa disposição de espírito que te permite desprezar todos os bens vulgares e tender apenas para o sumo bem: não pretendo sequer que te tornes maior ou melhor do que te esforçavas por ser.
A tua preparação de base era bastante ambiciosa: procura, portanto, atingir somente o alvo que te tinhas proposto e põe em prática os princípios que já interiorizaste.
Em suma, para seres sábio, bastar-te-á manteres os ouvidos fechados; só que não será suficiente usar cera: necessitarás de uma matéria mais densa do que a usada por Ulisses nos seus companheiros.(1)
A voz temida pelos marinheiros, embora sedutora, não era a voz de todo o mundo; aquela de que nós devemos precaver-nos não provém de um recife, mas ressoa nos quatro cantos da terra.
Passa, por conseguinte, ao largo não apenas de um local tornado suspeito pela sua traiçoeira sedução, mas de todas as cidades. Mostra-te surdo aos conselhos dos que mais te querem bem: com boas intenções, apenas te desejam mal.
Se quiseres ser feliz, pede aos deuses que nada do que para ti desejam se realize. Esses bens que gostariam de ver acumulados sobre a tua pessoa não são bens reais; existe somente um bem, causa e fundamento da felicidade: a autoconfiança.
Para a obteres só tens um caminho: negar qualquer importância ao trabalho, ou seja, considerá-lo como incluído no número daquelas coisas que em si não são boas nem más.(2)
De fato, é impossível suceder que uma mesma coisa seja alternadamente boa e má, fácil de suportar e assustadora. O trabalho não é um bem. O que é então um bem? O desprezo pelo trabalho em si mesmo.
Por isso eu censuro toda a atividade vazia de sentido. Mas quando o esforço visa a obtenção da virtude, nesse caso, quanto maior for a energia dispendida, quanto menores o cansaço e as concessões ao repouso, tanto maior será a minha admiração e o méu grito de incitamento:
“Assim mesmo, coragem! Ânimo, tenta atingir o rume de um só fôlego!”
O trabalho serve de estímulo às almas nobres. Não deves, todavia, limitar as tuas ambições aos votos que os teus pais faziam para ti em pequeno; de resto seria ridículo um homem como tu, que atingiu na sua carreira os postos mais altos, continuar a incomodar os deuses!
Para que precisas tu de lhes pedir seja o que for? Constrói a tua própria felicidade, o que facilmente farás desde que entendas isto: é bom tudo o que implica a virtude, é mal tudo o que incluir a presença do vício.
Nada é susceptível de brilhar se não estiver banhado de luz, nada é sombrio se não estiver envolto em trevas ou situado à sombra de qualquer objeto escuro; para haver calor é preciso recorrer ao fogo, para haver frio é preciso expor as coisas ao ar; da mesma maneira, o que faz as coisas virtuosas ou condenáveis é apenas a presença da virtude ou do vício, respectivamente.
Em que consiste o bem? Na ciência.(3)
Em que consiste o mal? Na ignorância.
O sábio, esse superior artista da filosofia, saberá rejeitar ou escolher o que for oportuno, mas sem sentir temor pelo que rejeita, nem admiração pelo que escolhe; para tanto basta que ele possua uma alma nobre e firme.
Proíbo que te deixes abater ou deprimir! Não basta sequer que não rejeites o trabalho: tens de exigi-lo!
“Que dizes?” objetarás. –
“Não é de rejeitar um trabalho fútil, supérfluo, suscitado por motivos pouco elevados?”
Não é, como também o não é um trabalho aplicado a objetos cheios de beleza. O que interessa é a capacidade de resistência da alma, e esta deve procurar com entusiasma tarefas duras e difíceis, deve dizer a si própria:
“Porque páras? Não é digno de um homem recear o suor.”
Resta-me acrescentar que, para a virtude ser perfeita, é preciso que a nossa vida, em todas as circunstâncias, mantenha uma linha de rumo constante e em inteira coerência consigo mesma, o que apenas poderemos conseguir através da ciência, do conhecimento das coisas humanas e divinas.
Aqui reside o supremo bem; se atingires este ponto deixarás de ser um suplicante, para te tornares amigo íntimo dos deuses!
“Mas como se chega a esse ponto?” Não é preciso atravessares os Alpes Peninos ou Graios nem os desertos da Candávia; não terás de cruzar as Sirtes, nem Cila ou Caríbdis – por onde aliás passaste por causa dessa tua insignificante procuradoria.
Desta vez o caminho é seguro, é ameno, e a natureza deu-te qualidades para o empreenderes, qualidades que, se não desistires a meio, te farão chegar à meta como homem igual a um deus.
O que te fará igual a um deus não é o dinheiro, porque um deus nada possui.
A toga pretexta também não, porque Deus é nu.
Nem a fama, nem a ostentação da tua pessoa, ou a propaganda do teu nome espalhada entre os povos: Deus, ninguém o conhece, muitos pensam mal dele, e impunemente.
Não será a multidão de escravos que transporta a tua liteira pelas ruas da cidade ou pelas estradas: Deus, esse ente superior e potentíssimo, põe, ele próprio, todo o universo em movimento.
Não serão sequer a beleza ou a força que te tornarão feliz: com a velhice ambas desapare- cem.
Devemos procurar algo que se não deteriore com o tempo, nem conheça o menor obstáculo.
Somente a alma está nestas condições, desde que virtuosa, boa, elevada. Um deus morando num corpo humano – aqui está a designação justa para essa alma.
Uma alma assim tanto pode encontrar-se num cavaleiro romano, como num liberto, como num escravo! O que são, na realidade, um “cavaleiro romano”, um “liberto”, um “escravo”? Apenas nomes, derivados da ambição e da injustiça humanas.
Para subir ao céu pode partir-se de qualquer canto. Ergue-te, pois,
mostra-te tu também digno de um deus.(Vergílio , Aen., VIII, 364-5 (cf. supra carta 18, 12).)
Para o conseguires, de nada serve o ouro ou a prata: com estes materiais é impossível modelar a imagem da divindade. Pensa que os deuses, no tempo em que nos escutavam, eram representados em figuras de barro!
Passar Bem!
(1) Alusão ao famoso episódio das Sereias (Odiss., XII, 142 ss.).
(2) Não será inútil sublinhar que não estamos perante nenhum incitamento à ociosidade! Trata-se, sim, de negar que o trabalho, qualquer atividade em si não é um bem se não visar a obtenção da virtude, e menos ainda serão um bem os frutos materiais do trabalho. Toda a ação que não renha em vista o bem supremo não é em si boa nem má, pertencendo por isso ao vasto número dos “indiferentes”.
(3) Entenda-se “ciência” no sentido que Séneca (como o estoicismo em geral) dá ao termo: “ciência das coisas divinas e humanas”, “sabedoria”, “sageza”.