Carta 124
“Posso dar-te a saber muitos preceitos dos antigos, se te não repugna conhecer certas minúcias subtis!” Vergílio, Georg., I, 176-7.
Claro que te não repugna, não há subtileza capaz de te meter medo. Não cabe na tua excelente formação abordar apenas as questões de grande peso; tens também a minha aprovação por procurares sempre extrair dos teus estudos algum progresso moral e por apenas te indagares quando vês que uma extrema subtileza não leva a resultado algum.
Vou fazer o meu melhor para que não seja este o caso.
A questão é esta: o bem é apreendido pelos sentidos ou pelo intelecto?
Ponto anexo: nos animais irracionais e nos recém-nascidos não existe a noção de bem. Os pensadores para quem o bem supremo é o prazer consideram que o bem é sensível (1); nós, pelo contrário, como entendemos que o bem é coisa própria da alma, temo-lo por inteligível.
Se fossem os sentidos a ajuizar do bem não haveria motivo para recusarmos qualquer prazer, pois todos eles nos atraem, todos nos seduzem. Inversamente, também nunca sofreríamos voluntariamente dor alguma, uma vez que toda a dor é lesiva dos sentidos.
Além disso, também não nos mereceriam nenhuma censura nem os excessivos apreciadores do prazer nem os mais tímidos perante a dor. E, todavia, nós censuramos a gula e a libertinagem, e desprezamos os homens que por medo à dor não ousam comportar-se como verdadeiros homens.
De fato, onde está a sua falta, se é verdade que eles obedecem aos sentidos e é a estes que cabe ajuizar do bem e do mal? Não foi aos sentidos que concedestes o direito de decidir o que tal matéria: assim como é ela a decidir sobre a felicidade, a virtude, a moral, é ela também quem determina o que é o bem e o que é o mal. De acordo com os pensadores acima referidos, é à parte inferior que se concede pronunciar-se sobre a superior; por outras palavras, são os sentidos – os sentidos obscuros e confusos, mais lentos ainda nos homens do que nos animais – quem vai pronunciar-se sobre o que é o bem! E que dizer de um filósofo para quem o sentido mais apurado é o tato e não a visão ?
Um sentido que nem sequer é tão subtil e apurado como a visão encarregado de destrinçar o bem e o mal!… Estás a ver como é ignorante da verdade, estás a ver como rebaixa o sublime e o divino este filósofo que decide por meio do tato qual o supremo bem e qual o mal supremo? (2)
“Toda a ciência, toda a técnica necessita de uma base apreensível pelos sentidos a partir da qual se desenvolva e progrida; do mesmo modo, a felicidade também tem a sua base, o seu início, em algo de manifesto e apreensível pelos sentidos. Até mesmo vós, estóicos, dizeis que a felicidade tem o seu ponto de partida em algo de imediatamente evidente!”
O que nós dizemos é que a felicidade depende de a vida estar de acordo com a natureza; o que seja “estar de acordo com a natureza” é um dado evidente e imediato, tal como por exemplo o conceito de “inteiro”.
Esse estar de acordo com a natureza (que é uma propriedade de todo o ser assim que nasce), a isso não chamo eu um bem, mas sim o começo do bem. Vós atribuis à primeira infância o supremo bem, o prazer, o que equivale a dizer que o recém-nascido já parte da situação a que chega o homem perfeito! Não será isto pôr a copa no lugar da raiz?
Se alguém afirmasse que o feto, oculto ainda no ventre materno, de sexo indefinido, ser frágil, incompleto e informe já estava na posse de algum bem, o erro seria universalmente evidente. No entanto, que diferença separa a criança acabada de nascer e aquela que é ainda um fardo oculto no corpo da mãe? O grau de maturação de um e de outro no que respeita à percepção do bem e do mal é idêntico; o recém-nascido é tão incapaz de perceber o que é o bem como uma árvore ou como um animal irracional.
E porque é que não existe o bem numa árvore ou num animal irracional? Porque carecem de razão. No recém-nascido, por conseguinte, também não existe o bem porque ele carece ainda de razão. Somente quando aceder à razão acederá também ao bem. Uma coisa é um animal irracional outra coisa um animal ainda não racional, e outra coisa um animal racional mas imperfeito; em nenhum destes existe o bem, somente a razão é que permitirá a sua existência.
Qual é então a diferença entre os três tipos que eu mencionei? No animal irracional nunca existirá o bem; no animal que ainda não é racional não pode por enquanto existir o bem; no que é racional mas imperfeito pode existir o bem, embora de momento não exista.
Repito, amigo Lucílio: o bem não se encontra em todo e qualquer corpo nem em toda e qualquer idade, e está tão longe da infância como o ponto de chegada está do ponto de partida, ou a obra acabada do esboço inicial; não existe, portanto, num corpito frágil, ainda em fase de crescimento.
E não está nesse pequeno corpo como não estava ainda no embrião. Também se pode pôr a coisa nestes termos: nós damo-nos conta de que há um certo bem próprio de uma árvore ou de um arbusto, mas ele não está presente desde logo nos primeiros rebentos da planta ao brotar do solo.
Também há um certo bem próprio do trigo, só que ele ainda não está presente na ervinha leitosa, nem quando a tenra espiga começa a ganhar folhas, mas somente quando o calor e a completa maturação dão à espiga a sua completude.
Tal como nos restantes seres da natureza o seu bem específico só aparece na plena maturidade, também o bem específico do homem só surge nele quando ele acede à perfeita razão.
Que bem específico é o do homem? Já to digo: é uma alma livre, elevada, que tudo submete a si mesma sem a nada se submeter. E tanto este bem se não verifica na infância que a puberdade nem suspeita da sua existência, e até na adolescência seria utópico esperá-lo; e bem irá a velhice se após um longo e constante estudo se conseguir aproximar dele. Ora se o bem é isto, obviamente será inteligível.
“Mas tu disseste” – objetar-me-ão
“que há um certo bem próprio da árvore ou do arbusto; pode, portanto, haver um bem próprio do recém-nascido”. O verdadeiro bem não existe nem nas árvores nem nos animais irracionais; quando falamos em “bem” a seu respeito estamos a usar a palavra “bem” em sentido figurado. E se me perguntas que bem é esse eu dir-te-ei: é a obediência à sua própria natureza. O bem em si não pode de modo algum ser apanágio de um animal irracional, uma vez que é específico de seres mais dotados e perfeitos. O bem só existe onde existe a razão. Há na natureza quatro tipos de seres: a árvore, o animal, o homem, o deus. Estes dois últimos, por serem racionais, possuem natureza idêntica, apenas diferindo entre si por um ser imortal e o outro mortal (3)
O seu bem específico é a natureza que lho faculta no caso do deus, e o longo estudo no caso do homem. Os restantes seres são perfeitos em relação à sua natureza, mas não absolutamente perfeitos porque desprovidos de razão. A perfeição absoluta é aquela que é perfeita em relação à ordem universal da natureza, e esta é racional; os diversos seres só podem ser perfeitos em relação à sua espécie.
Uma criatura para quem não existe a felicidade não possui naturalmente a condição que permite a felicidade; esta, por sua vez, depende de um conjunto de bens. O animal irracional não conhece a felicidade nem as condições que permitem a felicidade, logo não existe o bem no animal irracional.
O animal irracional apreende o presente através dos sentidos, e apenas se lembra do passado se depara com uma conjuntura que lhe provoca uma sensação semelhante; é o caso de um cavalo, que se recorda da estrada quando é levado até junto dela. No estábulo, porém, não tem qualquer recordação da estrada, embora a tenha percorrido inúmeras vezes.
A terceira secção do tempo, ou seja, o futuro também está fora do alcance dos irracionais. Ora, como é possível nós imaginarmos perfeita a natureza de seres que carecem da faculdade de recordar o passado ? O tempo consta de três secções – passado, presente e futuro. Os animais só têm à sua disposição a mais breve e transitória das três, o presente; a recordação do passado é rara, e apenas é despertada pela ocorrência de circunstâncias presentes. Por conseguinte, o bem próprio de uma natureza perfeita não pode existir numa natureza imperfeita; se não for assim, isto é, se o bem em si estiver ao alcance da natureza animal, então está-lo-á também das plantas. Eu não nego que os animais irracionais, naquilo que parece ser conforme à natureza, possuem certas tendências fortes e determinadas, só digo é que elas são desordenadas e confusas, ao passo que o bem, por definição, nunca é desordenado e confuso.
“Como assim? Os movimentos dos animais irracionais são sempre desregrados e sem finalidade?”
Eu di-los-ia desregrados e sem sentido se a sua natureza fosse susceptível de ordem. Os animais movem-se segundo a sua natureza. Uma coisa apenas se diz “desordenada” se for susceptível de ser “ordenada”, tal como só se diz que está “inquieto” quem for capaz de estar “tranquilo”.
Só existe vício num ser que possa praticar a virtude. O tipo de movimento próprio dos animais irracionais é apenas aquele que a sua natureza lhes permite. Mas enfim, para te não demorar mais tempo, admitamos que no animal irracional há um certo bem, uma certa virtude, uma certa perfeição; mas esse bem, essa virtude, essa perfeição não têm valor absoluto.
Tal valor absoluto é exclusivo dos seres racionais a quem é facultado saber porquê, dentro de que limites e de que modo agir. Em suma, o bem só existe em quem existe a razão.
Agora, tu queres saber qual a finalidade de toda esta discussão e que proveito ela pode trazer à tua alma. Já to digo. Primeiro, serve para exercitar a alma, dar-lhe acuidade, entretê-la numa ocupação séria dada a sua permanente tendência para a ação.
Além disso, serve para reter os homens que se inclinam para o mal. Mas digo-te mais ainda : de nenhum modo eu te posso ser mais útil do que dando-te a conhecer o teu bem próprio, separando-te dos animais irracionais e pondo-te em companhia de Deus.
Afinal, pergunto eu, para quê téntares desenvolver a força física? A natureza deu forças bem maiores a muitos animais, domésticos ou selvagens. Para quê embelezares-te? Faças o que fizeres, muitos animais irracionais serão sempre mais belos do que tu. Para quê penteares com tanto cuidado os teus cabelos? Com o cabelo caído à moda dos Partos, atado à moda dos Germanos ou eriçado como o usam os Citas – mais densas serão sempre as crinas de qualquer cavalo e mais bela a juba de qualquer leão.
Mesmo que decidas treinar-te para corridas de velocidade nunca serás tão veloz como uma lebre. Não quererás tu deixar essas competições em que necessariamente ficarás a perder, em especialidades que não são a tua, e remeter-te à prática do teu bem específico? Esse bem que consiste numa alma escorreita e pura, émula da divindade, erguida acima do vulgo humano e sem recorrer a nada exterior a ti?
És um animal racional. Qual é então o teu bem próprio? A perfeita razão. Procura elevá-la ao mais alto grau, deixa-a expandir-se tanto quanto lhe for possível.
Considera-te a ti próprio feliz somente quando toda a alegria nascer de ti mesmo, quando, ao ver os objetos que os homens conquistam, ambicionam, guardam como preciosidades, nenhum encontrares entre eles que tu prefiras ou, melhor ainda, que tu sequer desejes.
Vou oferecer-te uma sentença lapidar que servirá para te pesares a ti mesmo e avaliares qual o teu grau de perfeição: serás possuidor do teu único bem próprio quando te convenceres de que os felizes deste mundo são os mais infelizes dos homens.
Passar Bem!
(1) Cf. Usener, Epicurea, fr. 397 (in fine) – 400 (pp. 273-6). (2) Aristipo de Cirene??, cf. Cícero, Acad., 2, 20 e 26.
(3) Cf. Píndaro, Nem., 6, 1-4: “Uma só é a raça dos homens e dos deuses. Ambas respiramos, vindas da mesma mãe. Porém, wn poder bem distinto nos separa. Uma nada é; e o brônzeo céu, esse permanece sempre seguro” (crad. M.H. da Rocha Pereira, Hélade, p. 173).