Carta 123
Cheguei à minha vila de Alba, já noite adiantada, arrasado mais pelo acidentado do percurso do que propriamente pela distância. Entro em casa, e a única coisa preparada que encontro … é o meu apetite!. Decido estender-me e descansar num divã e aproveitar da melhor maneira o tempo que o cozinheiro e o padeiro me vão fazer esperar.
Dialogo comigo mesmo:nenhum contratempo é realmente grave se o encararmos de ânimo leve, nem nos teremos de aborrecer com nada se não decidirmos exagerar e tomar a peito os nossos aborrecimentos.
O meu padeiro não tem pão para me dar: o feitor, o mordomo ou o caseiro com certeza que terão algum.
“Pão de segunda”
dirás.
Espera um pouco, e em breve ele se tornará de boa qualidade: mais, a fome se encarregará de o transformar num pão macio e branquinho! Bastar-me-á para tanto não comer enquanto a fome não me apertar. Decido-me, portanto, a esperar ou que alguém me dê um bom pão ou que eu não me importe de comer um mau.
Precisamos de nos contentar com pouco: não faltarão, mesmo a gente rica e bem preparada, lugares e ocasiões em que depare com dificuldades. Ninguém pode possuir tudo quanto quer, mas toda a gente pode não querer o que não tem e aproveitar com satisfação o que as circunstâncias lhe proporcionam.
Uma grande parte da nossa liberdade está num estômago bem educado e habituado a sofrer contrariedades! Ninguém pode imaginar o prazer que eu sinto ao ver como a minha fadiga se acomoda a si própria: não preciso de massagistas, nem de um banho quente, o único remédio de que necessito é um pouco de tempo!
A tensão resultante do cansaço relaxar-se-á com o repouso, e o meu jantar de circunstância saber-me-á melhor do que um banquete de recepção! Tive de experimentar de improviso de que era capaz a minha alma, e o resultado da experiência é, por isso mesmo, mais imediato e conforme à verdade.
Quando a alma se prepara de antemão e se dispõe a aguentar o que possa sobrevir não é tão evidente a robustez real de que ela dispõe. As melhores provas de firmeza de alma são as que surgem de improviso: aceitar os contratempos não só com calma mas também com boa disposição; não se irritar, não resmungar; suprir as carências com a ausência de desejos, convencer-se de que aos seus hábitos pode faltar qualquer coisa, mas que a si mesma nada falta!
Nós não nos damos conta de que imensas coisas são supérfluas senão no momento em que elas nos faltam, o que significa que nós as usamos apenas porque as tínhamos, e não porque as devêssemos usar.
E quantas coisas não adquirimos nós apenas porque outros – a grande maioria! – as adquiriram! Uma das causas da nossa infelicidade é nós vivermos sempre a imitar os outros, não nos guiando pela razão mas deixando-nos arrastar pela moda.
Se fossem poucos a usar certas coisas, nós não os quereríamos imitar, mas quando a moda se generaliza lá vamos nós atrás – como se a frequência fosse sinal de algum valor!
Em vez do bem usamos como critério o erro, – na condição apenas de esse erro ser o hábito da maioria. É assim que ninguém hoje viaja sem uma escolta de cavaleiros númidas, sem um acompanhamento de batedores a pé: é uma vergonha social não ter serviçais que desobstruam a via de transeuntes e que, pela nuvem de pó que levantam, mostrem que se aproxima uma personagem importante!
Não há ninguém que viaje sem uma fila de mulas carregadas de vasos em cristal, em murra, cinzelados pela mão de artistas célebres : é uma vergonha social dar a aparência de viajar somente com bagagem que possa levar encontrões à vontade. Toda a gente se faz acompanhar de pagens com o rosto coberto de cremes, não vá o sol ou o frio macular a sua pele delicada: é uma vergonha social ter no cortejo de escravos algum jovem de cara saudável, livre de cosméticos!
Há que evitar a conversa deste tipo de gente, verdadeiros almocreves do vício que o difundem de lugar em lugar. Poderia pensar-se que a pior raça de homens fossem os difusores de boatos, mas não: há também os difusores do vício. Nada mais nocivo do que ouvi-los falar: mesmo que as suas palavras não criem raízes de imediato, deixam pelo menos na alma algumas sementes que perduram em nós quando nos apartamos deles, para mais tarde ressurgirem em força.
Quem assiste a um concerto leva consigo nos ouvidos a doce melodia da música, que perdura e impede a reflexão, e não deixa fixar a atenção em coisas mais sérias; do mesmo modo a conversa dos aduladores e entusiastas do vício permanece no ouvido muito depois de a ela termos assistido.
E não é fácil expulsar da alma esse som tentador: ele continua a ressoar em surdina, acudindo-nos periodicamente à ideia. Devemos, por conseguinte, cerrar os ouvidos a tão perniciosas conversas, e logo desde o início, pois assim que lhes damos acolhimento elas crescem de atrevimento. E por fim até nos chegam a garantir:
“A virtude, a filosofia, a justiça – tudo isso não passa de ruído sem significado. A felicidade consiste apenas em gozar a vida: comer, beber, gastar a rodos, isso sim, é que é viver lembrando-nos de que somos mortais! Os dias passam, a vida escoa-se irremediavelmente. Temos dúvidas? Para que serve a sabedoria? Qual o gozo de nos fazermos ascetas quando ainda estamos em idade de poder, de dever fruir de prazeres que, de uma forma ou de outra, o tempo acabará por negar-nos? Não significará isso antecipar-mo-nos à morte e renunciarmos prematuramente aos prazeres que ela há-de roubar-nos? Não tens uma amante, nem um rapazinho para provocar os ciúmes da amante; sais de casa diariamente sem nunca te embriagares; jantas, como se tivesses de ir dar contas da despesa ao teu pai: isto não se chama viver, mas sim ver viver os outros! Só por demência é que poupas a herança que hás-de deixar, negando a ti mesmo todos os prazeres, e só conseguindo que o teu herdeiro te deteste em vez de te amar, pois quanto mais tu lhe deixares mais ele desejará a tua morte! Não ligues a menor importância a esses severos e sombrios censores da vida alheia e inimigos da sua própria, esses filósofos que pretendem dar lições ao mundo; não hesites em preferir a boa vida à boa reputação!”
Devemos fugir de tais loas como do canto das Sereias, que Ulisses não se atreveu a escutar senão bem atado ao mastro do navio.
O seu efeito é semelhante: afastam-nos da pátria, dos pais, dos amigos, da prática da virtude e, se não lhes passamos ao largo, esmagam-nos de encontro a uma vida de vergonha e depravação.(1)
Muito preferível é seguir o caminho do bem e nele persistirmos até que somente nos dê alegria aquilo que se conforma à moral! Esta via estará ao nosso alcance se nos persuadirmos de que apenas há dois tipos de coisas que nos podem atrair ou afugentar.
Atraem-nos as riquezas, os prazeres, a beleza, a ambição e outras agradáveis seduções; afugentam-nos, pelo contrário, o sofrimento, a morte, a dor, a desconsideração, as privações. O nosso dever, portanto, é adquirirmos uma formação que nos permita não temer estas nem desejar aquelas.
Lutemos contra umas e outras, cedendo o terreno ao que nos alicia, reunindo as forças contra o que nos ataca. Não vês tu como é diversa a posição do corpo conforme se desce ou se sobe por um plano inclinado? Quem desce um barranco inclina o corpo para trás, quem sobe uma ladeira inclina-o para a frente. Atirar o peso do corpo para a frente quando se desce, ou atirá-lo para trás quando se sobe, meu caro Lucílio, é contrariar as leis naturais. Ceder ao prazer equivale a uma descida; afrontar as dificuldades equivale a uma subida; neste segundo caso necessitamos de todo o esforço para subir, naquele necessitamos é de nos refrear.
Não penses tu que eu apenas considero altamente nociva para nós a conversa daqueles que enaltecem o prazer e que despertam em nós o medo do sofrimento, como se este em si não bastasse para nos atemorizar. Não, eu também considero nocivos todos aqueles que, utilizando uma linguagem de estóicos(2), apenas nos convidam ao vício. O raciocínio deles é este: só o sábio é hábil a fazer amor!
“Só o sábio é capaz de praticar esta arte; também é o sábio o maior perito em servir bebidas e em praticar amores homossexuais. Investiguemos, portanto, até que idade os rapazinhos servem para fazer amor!”
Deixemos estas práticas para os gregos! Por nosso lado, atentemos antes nestas máximas:
“Ninguém é bom por obra do acaso; a virtude aprende-se. O prazer é uma coisa rasteira, insignificante, a que não devemos dar o mínimo valor; os animais irracionais conhecem-no igualmente, até os seres mais vis e desprezíveis correm para ele. A fama é algo de vão e volúvel, mais instável do que o vento. A pobreza só é um mal para quem se revolta contra ela. A morte não é um mal, é sim, se queres saber, a única forma de igualdade entre os seres humanos. A superstição é um erro e uma loucura que receia os deuses em vez de os amar, e os profana em vez de lhes prestar culto. Que diferença há, de fato, entre negar os deuses e profaná-los?”
Aqui está o que nós devemos não só dizer, mas sobretudo, interiorizar.
A filosofia não pode prestar-se a desculpar o vício. Se o médico recomenda a um doente toda a espécie de excessos é porque este não tem salvação possível!
Passar Bem!
(1) Texto corrupto; a tradução corresponde ao texto estabelecido por F Préchac.
(2) Tal como os estóicos diziam, por ex., só o sábio conhece a verdadeira utilidade das coisas, estes falsos estóicos, imitando a linguagem da Escola, afirmam que só o sábio possui as indignas habilidades enumeradas.