carta 122
Os dias já estão começando a ficar mais pequenos, mas mesmo assim ainda facultam tempo suficiente a quem estiver disposto, passe a expressão, a surgir quando surge o dia!
Mais nobremente atento aos seus deveres será o homem que se levanta antes de ele nascer e acolhe já a pé os primeiros raios de sol; será, pelo contrário, uma vergonha permanecer deitado quando o sol já vai alto e começar a atividade só ao meio-dia; e até mesmo o meio-dia ainda é para muitos uma madrugada!
Há gente para quem não tem sentido a distinção entre a noite e o dia, e não é capaz de abrir os olhos, pesados da bebedeira da véspera, senão quando a noite já começa a cair. A condição de tal gente assemelha-se à dos nossos antípodas que, como diz Virgílio, vivem ao contrário de nós:
“quando o Sol nascente se aproxima de nós com os cavalos ofegantes, a Estrela da Tarde começa a brilhar sobre eles com seus raios !” Vergílio, Georg., 1, 250-1.
Só que é o modo de vida, e não a localização geográfica, que distingue tal gente do comum das pessoas! Temos aqui mesmo, em Roma, autênticos antípodas, que, no dizer de M. Catão (1), nunca viram o nascer nem o pôr do sol. Como acreditar que semelhante gente sabe como viver, se nem sequer sabe quando ? E dizem temer a morte, esses que preferem viver como que enterrados! Gente de tão mau agoiro como as aves noturnas !…
Por muito que empreguem no vinho e nos perfumes as trevas em que vivem, por muito que gastem os seus tempos de viciosa vigília em banquetes requintados de milhares de pratos – mais do que uma festa o que eles fazem é celebrar os próprios funerais. Só que o culto dos mortos é normalmente celebrado de dia!…
Mas para quem leva uma vida ativa nenhum dia é longo demais. Dilatemos a nossa vida: apenas na ação está a justificação e o dever de tal prolongamento. Limitemos a duração das noites, transferindo parte delas para ocupações próprias do dia. As aves que se criam com vista a futuros banquetes são mantidas no escuro para que a imobilidade favoreça a engorda, pois a inação total faz com que o seu corpo adquira um acréscimo de gordura, e a vida na sombra (2) torna-as pesadas e obesas.
Pelo contrário, o aspecto físico dos homens que preferem a vida noturna é disforme, têm no rosto uma cor mais inquietante que a palidez da doença: ficam quase transparentes, sem força nem energia, como carne apodrecida em corpos ainda vivos. E isto ainda eu considero o menor dos seus males , pois na alma a escuridão é muitissímo maior!
A alma deles jaz num torpor, numa treva tal que até os cegos lhe causam inveja. Aliás, quem é que alguma vez precisou de olhos para viver às escuras ?
Perguntas-me tu como se origina na alma esta forma de depravação que consiste em evitar o dia para fazer apenas vida noturna. Todos os vícios são hostis à natureza, todos eles evitam a ordem natural das coisas. O objetivo precisamente da vida libertina é deliciar-se com o insólito, afastar-se não apenas um pouco do caminho justo, mas distanciar-se dele o mais possível até levar um tipo de vida em tudo contrário ao normal. Ou não te parece ser contra a natureza beber em jejum, encher de vinho o estômago vazio e só ir comer depois de embriagado?
E todavia é este um vício habitual entre os jovens romanos amadores de cultura física, que vão encher-se de bebida quase à beira da piscina entre os banhistas nus, mais, que bebem para logo a seguir rasparem o suor que provocaram com incontáveis bebidas bem fortes! Beber depois do almoço ou do jantar, isso toda a gente faz. É essa a prática corrente entre os agricultores ignorantes do que seja o verdadeiro prazer!
O vinho puro só satisfaz quando não circula entre os alimentos e pode penetrar livremente até aos nervos, a embriaguês só é boa quando tem todo o espaço por sua conta.
Não te parece que vive contra a natureza um homem que se veste de mulher? Não vivem contra a natureza aqueles que procuram perpetuar indevidamente a aparência da mocidade? Que sorte mais cruel ou miserável poderá imaginar-se do que a de alguém nunca vir a ser homem para continuar a entregar-se a um homem?! Alguém a quem o sexo devia pôr ao abrigo da violação mas que nem graças à idade fica protegido contra ela? Não vivem ao contrário da natureza aqueles que desejam ter rosas no Inverno ou que, à custa de proteções aquecidas e de oportunas transplantações conseguem produzir lírios no tempo das brumas?
Não vivem ao contrário da natureza aqueles que plantam pomares no alto de torres? Ou aqueles que possuem bosques frondosos nos tectos e terraços das suas casas, fazendo nascer as raízes a uma altura que a custo as copas normalmente atingiriam?
Não vivem ao contrário da natureza aqueles que constroem em pleno mar os alicerces das suas termas na convicção de que é impossível nadar com requinte se as suas piscinas aquecidas não estiverem expostas ao vento e às ondas? E, uma vez habituados a fazer tudo ao contrário da ordem natural, acabam por se afastar em tudo da natureza!
“É dia: logo é hora de dormir. É hora de repouso: toca a fazer exercício, a passear, a almoçar. Já se aproxima a aurora: altura ideal para jantar. O que importa é não fazer o que toda a gente faz: viver como o comum das pessoas é sinal de vulgaridade. Não nos guiemos pelo horário dos demais: determinemos nós quando começa e acaba a nossa manhã!”
Para mim, estas criaturas são verdadeiros defuntos! O que distingue, em boa verdade, a morte, mesmo a morte prematura, da vida desta gente que só tem por luz velas e archotes ?
Houve uma época em que (lembro-me bem disso!) muitos homens levavam este género de vida. Entre eles havia um antigo pretor, Acílio Buta. Depois de esbanjar um imenso património, foi lamentar-se a Tibério da miséria em que caíra.
“Acordaste tarde!”
respondeu-lhe o imperador. Júlio Montano, poeta sofrível, bem conhecido primeiro pela amizade depois pela indiferença de Tibério, recitava um dia um poema em que a torto e a direito falava do nascer e do pôr-do-sol. Um dos auditores, irritado por o recital durar o dia inteiro, dizia que nunca mais se devia assistir às suas declamações; então Pinário Nata exclamou:
“Eu por mim não posso ser mais simpático para com ele : estou disposto a escutá-lo desde um nascer até um pôr-do-sol !” Quando Montano recitava estes versos
“Febo começou a emitir ardentes chamas, o dia clareava róseo; a melancólica andorinha, antes de partir de novo, leva às crias pipilantes comida que lhes parte em migalhas com o bico delicado,” (3)
um certo cavaleiro romano de nome Varo, amigo de M. Vinício, grande apreciador de opíparos banquetes a que a língua de prata lhe facultava o acesso, exclamou:
“Lá começou o Buta a dormir!”
Daí a pouco, quando Montano recitava:
‘já os pastores instalaram os rebanhos nos redis já a noite lenta começa a trazer o silêncio à terra sonolenta,” (Id., ibid., fr. 2.)
o mesmo Varo gritou:
“Que dizes? Já é noite? Então tenho de ir cumprimentar o Buta ! ” (4)
Nada era mais conhecido em Roma do que a vida completamente às avessas que Buta levava. Mas, como disse, pela mesma época muitos outros viviam assim. O motivo por que alguns preferem este estilo de vida não é tanto eles pensarem que a noite tem por si mesma algum encanto especial; é antes a sua repugnância por tudo o que é habitual, é a sua má consciência que a luz do dia acentua; é ainda o fato de eles desejarem ou desprezarem as coisas consoante elas são caras ou baratas, e por isso a luz, que é gratuita, só lhes desperta indiferença.
Como se isto ainda fosse pouco, os libertinos pretendem que a sua vida, enquanto eles vivem, ande nas bocas do mundo, pois imaginam perder o seu tempo se ninguém falar deles. Por isso estão sempre a fazer qualquer coisa que suscite falatórios. Muitos dissipam os bens em festins, muitos outros com as amantes, mas para ganhar fama num tal meio importa mais a originalidade do que a dissipação pura e simples: numa cidade tão ocupada como Roma, uma perversão vulgar não é matéria para conversas! Nós ouvimos um dia esse exímio conversador que foi Albinovano Pedão contar que habitara em tempos um andar que dava para a casa de Sexto Papínio, um desses muitos inimigos da luz do dia.
“Por volta das nove da noite,”
contava ele –
” oiço o som da chibata. Pergunto o que se passa: dizem-me que ele está fazendo as contas com os escravos. Cerca da meia-noite, oiço uma gritaria pegada. Pergunto o que se passa. Respondem-me que faz gargarejos para aclarar a voz. Às duas da manhã pergunto o que significa aquele estrépito de rodas: o senhor vai passear! Já de madrugada, grande correria: chamam-se os escravos, os escanções, e os cozinheiros surgem de roldão. Que se passa? O nosso homem acabou de sair do banho e exige que lhe sirvam vinho com mel e flocos de cereais! Dirão vocês que o jantar ·deste homem durava mais do que um dia. Nada disso: pelo contrário, ele até vivia muito frugalmente: a única coisa que gastava… era a noite!”
E quando alguns de nós chamámos ao homem um sórdido avarento, Albinovano acrescentou:
“Até podereis dizer que ele vivia de óleo de candeia!”
Não deves admirar-te por descobrires no vício tantas peculiaridades: os vícios são numerosos, revestem inúmeros aspectos, é impossível classificá-los a todos. A observação do bem é simples; a do mal é complexa e susceptível de infinitos desvios.
O mesmo sucede com os costumes : para quem segue a natureza tudo se ‘apresenta fácil, sem problemas; poucas diferenças há entre os costumes dos homens de bem. Pelo contrário, os hábitos dos viciosos diferem não só dos normais mas também entre si. A causa principal desta moléstia parece-me ser a repugnância pela normalidade.
Há gente que se quer diferenciar dos demais pelo vestuário, pelo requinte gastronómico, pelo luxo dos carros: do mesmo modo se quer distinguir pela utilização do tempo. Rejeita os pecadilhos comuns porque depende das perversões para alcançar a sua triste reputação, e tal reputação é tudo quanto pretendem da vida estes indivíduos que vivem, por assim dizer, às avessas.
Em conclusão, Lucílio, prossigamos na via que a natureza nos prescreveu sem dela nos apartarmos um passo. Se a seguirmos, tudo nos parecerá fácil ao nosso alcance. Tentar viver ao contrário da natureza é a mesma coisa que remar contra a maré.
Passar Bem!
(1) Carão, Dieta, 76 Iordan. Também Cícero fala de certos debochados que “vomitam para cima da mesa, têm de ser levados em braços dos salões de banquete, mas no dia seguinte recomeçam a comezaina com a digestão ainda por fazer e que, como eles próprios dizem, nunca viram o pôr nem o nascer do Sol” (de finibus, II, 23).
(2) Os mss. oferecem a lição inaceitável superba umbra, variamente corrigida pelos editores. A tradução “a vida na sombra” apoia-se na conjectura de Badsruebner sub perpetua umbra.
(3) Morel, Frag. poet. lat., p. 120, fr. 1.
(4) Isto é, apresentar as saudações matinais!