Carta 120
Na tua carta, depois de teres divagado por várias questões menores, acabaste por fixar-te numa que desejas ver tratada por completo: como é que nós adquirimos as noções de bem e de moral. Em outros pensadores estas duas noções são distintas; para nós, estóicos, são apenas aspectos de uma realidade única.
Já me explico melhor.
Consideram alguns como “bem” tudo aquilo que é útil, e, consequentemente, chamam “bem” à riqueza, aos cavalos, ao vinho ou ao calçado – de tal modo está aviltada neles a ideia de bem que até a fazem descer a estas coisas mesquinhas!
Por “moralidade” entendem a noção teórica dos deveres imperativos, tais como cuidar religiosamente do pai na velhice, ajudar um amigo na miséria, mostrar coragem numa expedição militar, exprimir opiniões com prudência e moderação.
Para nós, como disse, aquelas duas noções são formas de uma só realidade. Nada é um bem se não for conforme à moral; tudo quanto é conforme à moral é necessariamente um bem.
Penso que será dispensável acrescentar qual a diferença entre ambas as noções, pois já muitas vezes me pronunciei sobre o assunto. Acrescentarei somente este ponto: nós nunca tomamos como um bem qualquer coisa que possa ser usada para o mal. Ora tu bem vês a quantidade de gente que usa para o mal a riqueza, a posição social, a força física !
Vamos lá, então, ao problema sobre o qual me pedes que te fale, ou seja, como é que nós adquirimos a primeira noção de “bem” e de “moral”.
A natureza não nos podia ter dado estas noções: ela apenas nos proporcionou as condições para a ciência, e não a própria ciência. Alguns dizem que nós “tropeçámos” nessa noção – o que é absolutamente incrível, imaginar . que a visão da virtude foi ao encontro de alguém por puro acaso !
Em nossa opinião, foi a observação e a comparação de diversos fenômenos que nos levou à conclusão; na nossa escola, entendemos que se chegou aos conceitos de “moral” e de “bem” por meio da analogia.
Já que os gramáticos latinos deram direito de cidade a este termo de “analogia”, entendo que o não devemos proscrever, mas sim usá-lo de pleno direito. Empregá-lo-ei, portanto, não já como um vocábulo de importação, mas sim como palavra de uso corrente.
Veja-mos agora em que consiste neste caso a analogia. Nós demo-nos conta da saúde do corpo: a partir daí, deduzimos a saúde da alma. Demo-nos conta de uma certa força do corpo: a partir daí deduzimos a existência de uma energia da alma. Por vezes contemplámos com admiração certos atos de bondade, de humanidade, de coragem, e começámos a apreciar tais atos como modelares.
Por vezes, nesses atos introduziam-se elementos condenáveis que, todavia, se mantinham escondidos sob o aspecto fulgurante de um gesto excepcional: habituámo-nos a disfarçá-los.
A natureza leva-nos a exagerar o que merece louvores e toda a gente, ao exaltar a glória de alguém, ultrapassa sempre a verdade: foi assim, contudo, que criámos a imagem de um bem inexcedível.
Fabrício rejeitou o ouro de Pirro na convicção de que ser capaz de desprezar as riquezas de um rei vale mais do que ter um reino. O mesmo Fabrício, quando o médico de Pirro se lhe ofereceu para envenenar o rei, mandou prevenir Pirro contra a traição que se preparava.
A mesma alma foi capaz de se não deixar vencer pelo ouro nem de querer vencer pelo veneno. Sentimo-nos cheios de admiração por este grande homem que se não deixou aliciar nem pelas promessas do rei nem pelas dos traidores ao rei, firme no seu apego ao ideal do bem, e mesmo em plena guerra conservando as mãos limpas – coisa bem difícil de conseguir! – ; este homem que acreditava não ser possível fazer certas coisas sem sacrilégio até mesmo a um inimigo, e que, conservando a mais severa pobreza – seu título de glória! -, recusou com o mesmo espírito tanto o ouro como o veneno.
“Vive graças a mim, Pirro”,
dizia ele –
“aproveita agora do que não há muito te aborrecia: Fabrício não se deixa corromper !”
Horácio Cocles ocupou sozinho a entrada estreita da ponte e ordenou que a mesma fosse destruída para impedir o caminho ao inimigo, embora assim ficasse com a retirada cortada; entretanto, foi resistindo a todos os ataques até se ouvir o madeiramento da ponte ruir com fragor. Olhou então para trás e, vendo que com perigo da vida livrara do perigo a pátria, gritou:
“Quem quiser que venha atrás de mim!”,
e atirou-se de cabeça ao rio, lutando na corrente com tanto denodo para salvar as armas como para salvar a vida. Recoberto gloriosamente das suas armas vitoriosas, voltou a Roma tão seguro de si como se tivesse vindo pela ponte ! São atos como estes que nos fazem conceber o que seja a virtude.
Vou acrescentar uma observação que poderá talvez parecer estranha: por vezes, um mal real apresenta o aspecto de bem moral, e igualmente a perfeição moral evidencia-se sob um aspecto diametralmente oposto.
Como sabes, há vícios que estão muito próximo da virtude e, mesmo em indivíduos completamente destituídos de escrúpulos, pode notar-se uma certa afinidade com o bem: por exemplo, o esbanjamento pode passar por generosidade, apesar da enorme diferença que há entre saber dar e não saber conservar.
Muitos homens há, Lucílio, digo-te eu, que, mais do que dar, apenas dissipam, pois eu não considero generoso quem desbarata os seus próprios bens. A indiferença pode passar por amabilidade, e a inconsciência por coragem. É esta afinidade que nos obriga a tomar atenção e a bem distinguir comportamentos semelhantes na aparência mas imensamente distintos na realidade.
Ao observarmos homens que se notabilizaram por alguma ação fora do comum, começamos a reparar que um deles, por exemplo, realizou algo com grande entusiasmo e força de carácter – mas que isso foi uma ação isolada. Vemos um outro ser corajoso na guerra mas cobarde no foro, suportar com dignidade a pobreza mas rebaixar-se ante as más-línguas. Em tal situação enaltecemos o ato, mas desprezamos o homem.
Em contrapartida, vemos um outro mostrar-se generoso para com os amigos e tolerante para com os inimigos, tratando com a mais completa isenção os assuntos do Estado e os seus próprios, e mostrando-se tão capaz de aguentar os pesados encargos impostos como de revelar capacidade para agir no momento oportuno. Vimo-lo também distribuir dádivas a mãos ambas quando era necessário concedê-las, vimo-lo mostrar inabalável persistência, suprindo com força de ânimo o cansaço físico, quando dele se exigia um esforço prolongado.
Além disso conservava-se em todos os seus atos sempre igual a si mesmo, homem bom não por cálculo mas por o seu carácter o levar não só a ser capaz de agir segundo o bem mas, mais do que isso, a ser incapaz de agir sem ser segundo o bem. Num tal homem verificamos a existência da virtude levada à perfeição.
A virtude subdivide-se em quatro aspectos: refrear os desejos, dominar o medo, tomar as decisões adequadas, dar a cada um o que lhe é devido (1)
Concebemos assim as noções de temperança, de coragem, de prudência e de justiça, cada qual comportando os seus deveres específicos.
A partir de quê, então, concebemos nós a virtude? O que no-la revela é a ordem por ela própria estabelecida, o decoro, a firmeza de princípios, a total harmonia de todos os seus atos, a grandeza que a eleva acima de todas as contingências. A partir daqui concebemos o ideal de uma vida feliz, fluindo segundo um curso inalterável, com total domínio sobre si mesma.
E como é que este ideal aparece aos nossos olhos? Vou dizer-te.
O homem perfeito, possuidor da virtude, . nunca se queixa da fortuna, nunca aceita os acontecimentos de mau humor, pelo contrário, convicto de ser um cidadão do universo, um soldado pronto a tudo, aceita as dificuldades como uma missão que lhes é confiada. Não se revolta ante as desgraças como se elas fossem um mal originado pelo azar, mas como uma tarefa de que ele é encarregado.
“Suceda o que suceder”, – diz ele “o caso é comigo; por muito áspera e dura que seja a situação, tenho de dar o meu melhor!” Um homem que nunca se queixa dos seus males nem se lamenta do destino, temos forçosamente de julgá-lo um grande homem! Tal homem dá a conhecer a muitos outros a massa de que é feito, brilha tal como um archote no meio das trevas, atrai para junto de si todas as almas, dada a sua impassível tranquilidade, a sua completa equanimidade para com o divino e o humano.
Tal homem possui uma alma perfeita, levada ao máximo das suas potencialidades, tal que acima dela nada há senão a inteligência divina, uma parte da qual, aliás, transitou até este peito mortal.
E nada há de mais divino para o homem do que meditar na sua mortalidade, consciencializar-se de que o homem nasce para ao fim de algum tempo deixar esta vida, perceber que o nosso corpo não é uma morada fixa, mas uma estalagem onde só se pode permanecer por breve tempo, uma estalagem de que é preciso sair quando percebemos que estamos a ser pesados ao estalajadeiro.
A melhor prova, caro Lucílio, de que a alma provém de alguma origem elevada é ela ser capaz de julgar limitado e sem horizontes este espaço em que se move, e ser capaz de não recear sair daqui, porquanto, lembrando-se bem de onde veio, sabe igualmente para onde irá.
Não nos damos nós conta das limitações que nos afligem, dos problemas que o nosso corpo nos dá ? Ora nos queixamos da cabeça, ora do estômago, do peito ou da garganta; umas vezes são os nervos, outras os pés que nos atormentam, hoje é a diarreia, amanhã a expectoração; por vezes temos sangue em excesso, outras a menos:
De um lado e de outro nos empurram, tentando pôr-nos na rua! Isto é precisamente o que costuma suceder quando nos instalamos em casa alheia !
E, no entanto, embora nos tenha cabido em sorte um corpo prestes a desfazer-se, fazemos planos para a eternidade, projetamos as nossas esperanças até ao máximo limite possível da vida humana, sem haver riqueza ou poder que nos sacie !
Que pode haver de mais impudente e estúpido?
Nada satisfaz estes seres que em breve hão-de morrer, que já estão mesmo a morrer, pois cada dia nos aproxima mais do último, e cada hora nos empurra a todos até ao ponto de onde cairemos. Vê bem a cegueira das nossas mentes : o que chamamos futuro já está acontecendo, uma boa parte dele já pertence mesmo ao passado; o tempo que já vivemos voltou ao ponto onde estava antes de termos nascido.
Laboramos em erro ao recear o nosso último dia, já que cada dia dá o seu contributo à morte. O último passo que damos antes de cair não é a causa da nossa debilidade, é apenas o ponto em que ela se manifesta; o último dia empurra-nos para a morte, mas em todos os outros nos fomos aproximando dela; a morte vai-nos colhendo gradualmente, não nos arrebata de repente.
Por isso mesmo uma grande alma, consciente da sua natureza superior, esforça-se por se comportar com dignidade e diligência no posto para onde é destacada, sem tomar como seu nenhum dos objectos que a rodeiam, mas, como estrangeira em trânsito que é, servindo-se deles apenas como de coisas emprestadas.
Deparando nós com um homem assim dotado de firmeza de princípios, impossível seria não delinearmos a imagem de um carácter fora do comum, no caso de, como acima disse, tal homem permanecer igual a si mesmo e provar assim a realidade da sua grandeza.
Os princípios mantêm-se constantes, as falsas aparências pouco duram. Certas pessoas comportam-se alternadamente como Vatínios ou como Catões. Umas vezes até Cúria lhes parece pouco severo, Fabrício pouco pobre, Tuberão pouco frugal e contente com a sua humilde baixela; outras vezes rivalizam com as riquezas de Lícino, os banquetes de Apício, os luxos de Mecenas.
Não há melhor indício de um espírito mal formado do que a instabilidade e a permanente oscilação entre a afetação pela virtude e o amor pelo vício.
“Ora possuía duzentos escravos, ora só dez; ora / Ó falava de reis, de tetrarcas, de luxos e grandezas, ora exclamava: ‘Só quero uma mesa de três pés, · uma simples concha de sal, e uma toga grosseira que me proteja do frio!’ Desse alguém um milhão a este homem frugal e sem ambições – e dentro de cinco dias nem uma moeda restava … “ Horácio, Sat., I, 3, 11-17.
Quantos homens não há semelhantes à personagem destes versos de Horácio Flaco, sempre instáveis, praticamente irreconhecíveis, de tal modo erram ao sabor de ventos contrários!
Muitos, disse eu? São quase todos! Ninguém há que diariamente não mude de intenções e de objetivos: ora querem um casamento legítimo, ora preferem uma amante; ora se portam como tiranos, ora se mostram mais obsequiosos do que um escravo; ora andam impantes de orgulho até se tornarem odiosos, ora se encolhem e humilham ao mais baixo grau; ora dissipam fortunas, ora as acumulam avaramente.
Nada denuncia melhor a falta de princípios morais do que este assumir alternado de diferentes rostos que, para cúmulo da desfaçatez, são, cada um deles, sempre diversos de si mesmos.
Deves aceitar como um caso de excepção alguém que só desempenhe um papel na vida. Na realidade, para além do sábio, ninguém se contenta em fazer só uma personagem, todos estamos em constante mudança. Ora nos damos ares de gente frugal e austera, ora de dissipadores e libertinos, para logo a seguir pormos no rosto a máscara oposta àquela que acabámos de tirar.
Exige portanto, de ti próprio que sejas até ao fim da vida aquilo que decidiste ser, e faz com que os outros, se não te enaltecerem, possam pelo menos reconhecer-te. De indivíduos que ainda ontem encontrámos já hoje podemos ter o direito de perguntar: Quem é este?”, – tal a mudança que neles se operou.
Passar bem!
(1) Ou seja, a temperança (σωφροσυνη, temperantia), a coragem (ανδρέια, fortitudo), a justiça (δικαιοσυνη, iustitia), a prudência (φρονησις, prudentia), cf. S. V.F., I, 200. V. ainda Cícero, de officiis, I, 5.