Carta 68

Estou de acordo com a tua decisão: abriga-te no teu ócio, mas coloca o teu ócio ao abrigo dos demais. Podes estar certo de que, procedendo assim, te conformas, se não com os preceitos, ao menos com o exemplo dos mestres estóicos(1)

Digo-te mais: agirás segundo preceitos cuja validade será evidente tanto para ti como para quem quer que seja! É que nós, estóicos, não confiamos os nossos adeptos nem ao serviço de qualquer Estado, nem para sempre, nem indiscriminadamente.

Mais ainda, quando nós atribuimos ao sábio o único Estado digno dele – ou seja, o Universo! – , o sábio, embora levando uma vida retirada, nem por isso passa a situar-se à margem do Estado;o mais que sucede é que ele, deixando um lugarejo estreito, acede a espaços mais vastos e mais largos, e ao alçar-se até ao céu pode compreender até que ponto as magistraturas ou os tribunais se situam a um nível bem pouco elevado.

Fica certo de que nunca a ação do sábio é mais considerável do que quando à sua contemplação se oferece tanto o divino como o humano.

Mas voltemos àquele ponto que estava começando a aconselhar-te: a necessidade de manteres o teu ócio desconhecido dos outros. Não te será vantajoso anunciares publicamente que vais professar a tranquilidade da vida filosófica: atribui antes aos teus propósitos uma outra motivação, por exemplo a falta de saúde, a falta de aptidões, a indolência!

Fazer do próprio ócio motivo de vaidade é uma ambição sem sentido. Há animais que, para escaparem aos eventuais predadores, disfarçam o rasto que produzem perto da entrada dos seus covis: idêntica atitude deverá ser a tua, de outro modo nunca faltará quem te persiga. Casa de portas abertas passam-lhe os gatunos adiante, enquanto aquelas que estão cheias de trancas e ferrolhos são arrombadas! O que atrai os ladrões é o insólito. O que está patente à vista de todos é considerado sem valor, o larápio despreza o que não tem segredo. É este um hábito próprio do comum das pessoas, sobretudo das mais incultas: só se deseja penetrar onde há mistério.

Por isso mesmo te digo que o melhor é nunca deixar que o nosso ócio dê nas vistas; ora uma forma de o fazer dar nas vistas é vivermos demasiado retirados, afastando-nos por completo do convívio com os outros. Este aqui foi viver para Tarento, aquele foi encerrar-se em Nápoles, aquele outro há muitos anos já que não sai de casa: quem deste modo torna o seu ócio motivo de falatório, só consegue com isso atrair os olhares de todos.

Se tu te queres retirar da vida pública não o deves fazer para servir de conversa aos outros, mas sim para poderes conversar contigo próprio! Conversa sobre ti mesmo, evitando totalmente fazeres a ti o que o vulgar das pessoas faz em geral na vida de sociedade, e assim te habituarás a só dizer – e ouvir dizer – a verdade!

Discute de preferência sobre os teus pontos fracos. Qualquer pessoa conhece as suas debilidades físicas. Consequentemente, há quem vomite para aliviar o estômago, há quem pelo contrário o robusteça com frequente ingestão de alimentos, há quem faça dieta de vez em quando para elimmar os excessos; quem sofre continuamente dos pés(2) evita a bebida ou as termas.

Assim cada qual, mesmo que não cuide do resto, pelo menos procura fazer frente aos seus males crónicos. Na nossa alma há igualmente partes enfermiças às quais importa prestar a devida atenção. Para que me servirá então o ócio senão para tratar das minhas feridas?

Se eu te mostrar o pé inchado, a mão coberta de manchas, a perna mirrada com os nervos esclerosados certamente me permitirás que eu fique em repouso e tente sanar a minha doença!

Pois fica sabendo que um mal ainda maior é este que te não posso mostrar: este tumor, este inchaço que reside no meu peito! Não, eu não pretendo que me cubras de louvores, ou me chames um homem admirável que se retirou por desprezar a sociedade e condenar todas as paixões que afligem os homens!

Uma coisa apenas eu condenei: a mim mesmo! Não deverás aproximar-te de mim na esperança de que eu possa ser-te útil. Estás enganado se pensas que podes encontrar aqui algum auxílio: quem mora nesta casa é um doente, não um médico.

Prefiro que, ao saíres da minha casa digas assim; “E pensava eu que este homem atingira a felicidade e a sabedoria, aprontava-me para escutar a sua palavra! Que desilusão! Nada aqui vi ou ouvi que provocasse em mim o desejo de voltar!” Se pensares e falares assim, a tua visita não terá sido inútil: antes quero que compreendas o meu ócio do que o invejes!..

“Mas que é isso, Séneca? Tu a aconselhares-me o ócio? Tornaste-te propagandista de Epicuro?”

Sim, aconselho-te o ócio – um ócio em que a tua ação será mais válida e mais digna do que no mundo em que vivias. Ter acesso às moradas soberbas dos grandes senhores, concitar os favores de velhos sem herdeiros, ter influência decisiva no foro – tudo isto são formas efémeras de poder, que atraem invejas e que, se as pesares pelo que valem, são indignas!

Há quem me ultrapasse de longe em influência no foro, há quem o faça graças às honras conseguidas através do serviço militar, há quem me anteceda no número de clientes. Não tenho possibilidades de igualar o favor de que eles gozam: pois que me importa a mim estar abaixo de todos os outros se conseguir erguer-me acima da fortuna!

Oxalá tu tivesses de há muito a intenção de seguires este propósito! Oxalá nós não pensássemos na felicidade senão quando já estamos à beira da morte! Mas agora já não há motivo para demoras! A teoria ensinava-nos o carácter efémero e adverso de muitas coisas; agora a experiência confirma esse ensinamento.

Façamos, portanto, como os cavaleiros que se atrasam na partida e pretendem recuperar em velocidade o tempo perdido: apertemos as esporas! A idade em que estamos é a mais adequada aos estudos filosóficos: já perdemos o ardor, já se fatigaram os vícios que vicejavam com o primeiro fervor da adolescência, pouco falta já para que se extingam por completo.

Perguntas tu: “Mas quando, ou em quê, tirarás tu proveito de uma lição que estudas quase ao deixar esta vida?” Pelo menos tirarei proveito nisto: em deixar a vida melhor do que quando entrei.

De resto não há motivos para pensares que, para aceder à virtude, é mais apta qualquer outra fase da vida do que a nossa atual: já muito experimentados, já muito batidos por longos e contínuos embates com a vida, é com as paixões quase sufocadas que nós entramos no caminho da perfeição.

Aqui está o que a nossa idade tem de bom: quem chega à sabedoria na velhice, chega com toda a experiência de muitos anos!

Passar bem!

(1)De fato, os mestres do estoicismo antigo aconselhavam aos seus discípulos a participação na vida política da cidade, v. por ex. S. V. F., III, 611, 697, 698, embora nenhum deles tivesse tido qualquer acção relevante como político. No entanto, Zenão acedeu a um pedido de Antígono Gónatas e enviou à corte deste o seu discípulo Perseu (v. S. V. F., I, 439). A esta relativa contradição entre os preceitos e a prática dos mestres estóicos alude Séneca em De tranq. an., I, 10: “(ZenãoCleantesCrisipo): nenhum deles participou na vida política, mas todos incitaram os seus discípulos à participação”. Em De otio, III, 2 Séneca resume concisamente a oposição entre epicuristas e estóicos a respeito desta questão: “Epicuro diz que o sábio não participará na vida política senão em circunstâncias excepcionais. Para Zenão, o sábio deve participar na política, a menos que a gravidade da situação disso o impeça.”
(2)Isto é, os doentes de gota.

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