Carta 66
Depois de tantos anos sem o ver reencontrei o meu antigo condiscípulo Clarano. Não esperas, julgo, que acrescente: “Está um velho!” O fato é que o homem conserva o espírito vivo e alerta, em contraste com a sua debilidade física.
A natureza mostrou-se injusta ao colocar um tal ânimo em corpo tão débil; a menos que a sua intenção fosse precisamente mostrar-nos como a presença de um ânimo vigoroso e feliz se acomoda bem em qualquer corpo.
Clarano triunfou de todas as suas deficiências e, começando por não dar importância a si próprio, acabou por ser capaz de não dar importância a coisa alguma.
Parece-me, portanto, que se enganou o poeta ao dizer que
mais grata é a virtude quando habita um corpo formoso (1)
A virtude, de fato, passa bem sem ornamentos, antes tem em si mesma a sua beleza, além de dar formosura ao corpo em que reside. O certo é que comecei a ver com outros olhos o meu amigo Clarano: até me pareceu belo, e tão escorreito de corpo como de alma.
De uma choupana pode sair um grande homem, num pobre corpo disforme e franzino pode morar uma alma grande e bela. Creio mesmo que a natureza se compraz em produzir homens assim como prova de que a virtude pode nascer em qualquer lugar.
E se pudesse criar almas puras desprovidas de corpo, decerto o faria; agora faz muito mais do que isso: cria homens fisicamente deficientes mas nem por isso menos capazes de vencer todos os obstáculos.
Creio bem que Clarano nasceu como exemplo, para que todos pudéssemos ver que a alma não sofre da deformidade do corpo, antes é este que se adorna com a beleza da alma!
Foram bem poucos os dias em que estivemos juntos mas ainda assim chegaram para termos várias conversas; de vez em quando irei recordando algumas, de cujo conteúdo te darei parte. No primeiro dia debatemos como é que podem ser iguais todos os bens sendo tríplice a respectiva natureza.
Na opinião da nossa escola alguns bens são de primeira classe, tais como a alegria, a paz, a preservação da pátria; outros, decorrentes de uma situação ingrata, são de segunda classe, tais como a resistência à tortura ou a firmeza de ânimo durante uma doença grave. Os primeiros bens que referi serão de imediato desejados por nós; os outros, somente se a tal formos forçados.
Há ainda os bens de terceira classe, tais como a modéstia das atitudes, a serenidade e a honestidade do rosto, os gestos adequados a uma pessoa de bom senso. Como é então possível a igualdade entre estes tipos de bens, quando alguns são objeto de aspiração enquanto outros nos despertam repulsa?
Se pretendermos estabelecer uma hierarquia entre os bens, comecemos por considerar o sumo bem e indagar em que consiste ele.
Uma alma que contempla a verdade, que atribui valor às coisas de acordo com a natureza e não com a opinião comum, que se insere na totalidade do universo e observa contemplativamente todos os seus movimentos, que dá igual atenção ao pensamento e à ação, uma alma grande e enérgica, invicta por igual na desventura e na felicidade e em caso algum se submetendo à fortuna, uma alma situada acima de todas as contingências e eventualidades, uma alma bela e equilibrada em doçura e energia, uma alma sã, íntegra, imperturbável, intrépida, uma alma que força alguma pode vergar, que circunstância alguma pode envaidecer ou deprimir – uma tal alma é a própria personificação da virtude.
Este seria o aspecto da virtude se se apresentasse sob um único aspecto, se se mostrasse toda de uma só vez. Na realidade são diversas as suas aparências, conforme a variedade de situações e ações que a vida nos apresenta: mas a virtude em si, não é maior nem menor.
De fato, nem o supremo bem pode sofrer decréscimo, nem a virtude pode recuar de um passo; pode, isso sim, é manifestar-se sob forma de diversas qualidades adequadas às circunstâncias em que vai atuar.
Em tudo quanto toca, porém, imprime indelevelmente a sua imagem; dá uma nova forma à nossa conduta, às nossas relações de amizade, à nossa vida familiar na qual participa como fator de harmonia.
Tudo o que lhe sai das mãos se transforma em objeto digno de amor, de culto, de admiração. A sua força e grandeza só não pode elevar-se mais alto porque o que é supremo não admite acréscimo: nada é mais reto do que a própria retidão, nada mais verdadeiro do que a verdade, mais moderado do que a moderação.
Toda a virtude assenta na justa medida, e a justa medida baseia-se em proporções determinadas. A firmeza não pode sequer tentar elevar-se, e o mesmo se dirá da confiança, da verdade, da lealdade.
Pode acrescentar-se alguna coisa àquilo que é perfeito? Nada, de outro modo não seria perfeito, pois algo se lhe acrescentou. Nada, por conseguinte, se pode adicionar à virtude, pois se tal fosse possível era porque algo lhe faltava.
Também a honestidade não é passível de qualquer acréscimo, pois o que é a honestidade decorre do raciocínio acima exposto. E quanto ao mais, o respeito pelas normas sociais, a justiça, a legalidade, não achas que são conceitos do mesmo tipo, definidos por critérios igualmente rigorosos ? Para uma coisa ser susceptível de acréscimo essa coisa tem de ser imperfeita. Todo o bem obedece a esta mesma lei: o interesse privado e o interesse público são tão dissociáveis como, que sei eu?, aquilo que merece o louvor se não distingue do que merece o nosso esforço. Por conseguinte, todas as virtudes são tão iguais entre si como todas as realizações da virtude e todos os homens dotados dessas virtudes.
As virtudes das plantas e dos animais, como mortais que são, igualmente são frágeis, transitórias e incertas; nascem e extinguem-se, e por isso não podem ser uniformemente avaliadas. As virtudes humanas, contudo, medem-se por um único critério, e esse critério é a razão, que em si mesma é perfeita e livre de contingências.
Nada é mais divino do que o divino, mais celeste do que o celeste. Tudo quanto é mortal pode decrescer e ruir, gastar-se e aumentar, esvaziar-se e encher-se; na sua tão inconstante sorte reina a desigualdade. A natureza do divino, todavia, é apenas uma. E a razão outra coisa não é senão uma parcela do espírito divino inserida no corpo do homem; se a razão é divina, e se todo o bem é inseparável da razão, então todo o bem é divino.
Mais ainda: entre as coisas divinas não há qualquer distinção, logo também a não há entre os bens. Por conseguinte são bens iguais entre si a alegria, por um lado, e, por outro, a resistência forte e tenaz à tortura.
Em ambos os casos se verifica a mesma grandeza de alma, embora descontraída e calma no primeiro, lutadora e tenaz no segundo. Ou será que tu vês alguma diferença entre a virtude do valoroso conquistador da fortaleza inimiga e a do soldado que obstinadamente resiste ao cerco? Houve grandeza em Cipião quando pôs cerco a Numância e o apertou de tal forma que obrigou homens até então invencíveis à autodestruição; mas houve grandeza também no ânimo dos sitiados ao perceberem que não está realmente cercado quem é livre de morrer, e, por isso mesmo, morre abraçado à liberdade.
Semelhantemente são iguais entre si os restantes estados de alma – liberalidade, firmeza, equanimidade, tolerância – tranquilidade, simplicidade, pois a todos eles está subjacente como fator comum a virtude, a qual proporciona à alma a retidão e a constância de propósitos.
Que dizes? não há qualquer diferença entre a alegria e a inflexível resistência à dor?” Não há nenhuma, no que concerne às duas formas de virtude em si; imensa, no que toca às circunstâncias em que uma e outra virtude se manifestam. É evidente que no primeiro caso estamos perante um natural abrandamento da tensão anímica e no segundo, perante uma dor antinatural. As situações que admitem o maximo de polaridade são, em si mesmas, indiferentes; em ambos os pólos ocorre a virtude.
A virtude não varia em função das circunstâncias: nem as duras e difíceis a tornam inferior, nem as agradáveis e felizes a tornam superior; conclui-se logicamente daqui que a virtude é sempre igual. Sejam quais forem as condições em que a virtude tem de agir, ela agirá com igual retidão, igual discernimento, igual pureza de intenções; tais bens são, por conseguinte, iguais, pois denotam um estado que não admite superação, quer no modo de viver a alegria, quer no modo de enfrentar os tormentos, e quando duas coisas são impossíveis de ser superadas – é porque são iguais.
De fato, se algum fator exterior à virtude fosse susceptível de a diminuir ou de a acrescentar, o único bem deixaria de consistir no bem moral. Se se admitir tal proposição, todo o conceito de bem moral cai por terra. E dir-te-ei porquê: porque não há bem moral numa ação praticada contra vontade ou sob coação; todo o bem moral tem de ser voluntário.
Imiscua-se nele uma dose de preguiça, de censura, de hesitação, de receio – e o bem moral perderá o que tem de melhor; a satisfação de si próprio.
Não pode haver bem moral onde não há liberdade; medo é sinónimo de escravatura! O bem moral goza de plena segurança e tranquilidade; se se retrai, ou se queixa, se julga como um mal aquilo que vai fazer, isso significa que se encontra perturbado e se debate em profunda contradição, atraído por um lado pela aparência do bem, retraído por outro ante a suspeita do mal.
Por esta razão, quem se propõe agir com honestidade nunca deve encarar os obstáculos que se lhe deparam como um mal, quando muito como um transtorno, e praticar o seu ato livre e voluntariamente. O bem moral nunca obedece a ordens e coações, é um estado puro, não contaminado por qualquer mal.
Conheço a objeção que neste momento se me poderá fazer:
“Tu pretendes convencer-nos de que não há qualquer diferença entre viver com alegria ou jazer na mesa da tortura até o torcionário ficar cansado?!”
Eu podería responder que, segundo o próprio Epicuro, o sábio, mesmo que o estivessem assando no touro de Fálaris, gritaria:
“Está-se bem aqui! Não sinto nada!” Epicuro, fr. 601 Usener.
Porquê então essa admiração quando eu digo que são bens iguais a comparência a um festim ou a indefessa resistência à tortura se até Epicuro afirma “que se está bem na grelha”, o que é ainda mais inacreditável?
Eu afirmo, no entanto, que há uma enorme diferença entre a alegria e a dor; se houver possibilidade de escolha, eu optarei pela primeira e evitarei a segunda, dado que aquela é natural, esta é antinatural.
Segundo este critério a diferença entre ambas é muito considerável: quando se trata da virtude, porém, ambas se situam no mesmo plano, quer a via da alegria, quer a da tristeza. Contratempos, situações dolorosas, qualquer espécie de transtorno, enfim, não têm a mínima importância, tudo a virtude derrubará.
Do mesmo modo que a luz do sol eclipsa as estrelas mais pequenas, também a virtude elimina e arrasa sob sua própria grandeza tudo quanto seja dor, sofrimento, insulto; onde brilha a virtude, tudo quanto sem ela é visível fica eclipsado, ao chocar contra a virtude todos os incómodos têm tanto significado como uma nuvem vertendo chuva sobre o mar!
E para te certificares de que assim é, vê como o homem de bem se afoitará sem hesitar a qualquer bela ação: ainda que diante dele se erga o carrasco, se erga o torcionário e a sua fogueira, o homem de bem avançará, atento apenas ao que deve fazer, e não ao que terá de sofrer, tão confiante no seu honesto propósito como o estaria ante um outro homem de bem; a seus olhos o seu ato aparecerá como verdadeiramente útil, seguro, bem sucedido.
Uma ação honesta, ainda que dolorosa e difícil, valerá tanto como um homem de bem, ainda que pobre, exilado ou doente!
Compara, por exemplo, por um lado um homem de bem que seja rico, por outro um que nada possua além dos seus bens interiores: ambos merecerão por igual o título de “homens de bem”, embora sejam diferentes as suas condições de fortuna. Conforme já atrás disse, idêntico juízo é aplicável tanto às coisas como aos homens: a virtude tanto é louvável num corpo forte e desenvolto como num enfermiço e deficiente.
Por conseguinte, não deverás estimar mais a tua virtude se a fortuna te permitir pôr ao seu serviço um corpo inteiramente válido do que se tiveres alguma deficiência física: se assim não fosse, seria como se nós estivéssemos a ajuizar do senhor a partir do aspecto dos escravos! Tudo quanto cai sob o domínio do acaso dinheiro, corpo, honras – merece tratamento de escravo, tudo são bens efémeros, transitórios, perecíveis, a sua posse é incerta; pelo contrário, as obras da virtude são livres e indestrutíveis, nem mais desejáveis se formos bem tratados pela fortuna, nem menos se sujeitos a quaisquer dificuldades materiais.
Assim como procedemos na escolha das nossas amizades, assim devemos agir em relação às coisas que desejamos. Tu, creio, não estimarias mais um homem de bem que fosse rico do que um que fosse pobre, nem um forte e musculoso do que outro magro e débil.
Pela mesma ordem de ideias, não te sentirás de certeza mais atraído e solicitado por uma situação aprazível e tranquila do que por uma que te exija esforço e energia.
Nesta última hipótese, deverias, logicamente, de entre dois homens de bem, ter mais apreço por aquele que estivesse lavado e perfumado do que pelo que estivesse coberto de poeira e de cabelo desgrenhado! E depois passarias a preferir o homem fisicamente válido e robusto ao deficiente ou ao zarolho; e gradualmente acabarias por te tornar esquisito ao ponto de entre duas pessoas igualmente justas e sensatas, escolheres aquela que tivesse uma cabeleira ampla e bem frisada!…
Ora quando em ambos os casos a virtude é idêntica não há que comparar as desigualdades que em outros aspectos possa haver, pois todas as outras qualidades são meramente acessórias, não essenciais. Haverá, porventura, alguém que exerça uma tão injusta discriminação entre a família a ponto de ter mais amor por um filho do que pelo outro, só porque um é são e o outro doente, porque um é alto e desempenado e o outro baixo e atarracado? Os animais não fazem distinções entre as crias e deitam-se para dar a mamada por igual a todas elas; também as aves partilham o alimento por igual entre os filhotes. Ulisses regressa aos rochedos da sua Ítaca como Agamémnon às altivas muralhas de Micenas. Ninguém ama a pátria por ser grande, mas por ser sua!
A que propósito vem tudo isto? Quero que fiques sabendo que a virtude encara com os mesmos olhos as suas obras, como se fossem suas crias, que tem a mesma complacência em relação a todas, embora dê mais atenção àquelas que exigem mais esforço; afinal, não é verdade que também o amor dos pais é mais desvelado pelos filhos que maiores cuidados inspiram? Não quer isto dizer que a virtude tenha mais apreço pelas obras que deparam com oposição e violência, mas sim que, à semelhança dos bons pais, as ampara e protege mais cuidadosamente.
Por que razão um bem não é superior a outro? Pela mesma razão por que nada é mais correto do que a correção, nada é mais plano do que o plano. De duas coisas iguais a uma terceira tu não poderás dizer que uma delas é “mais igual” do que a outra! Por isso mesmo nada pode haver de mais moral do que a própria moralidade. Se, portanto, a natureza de todas as virtudes é idêntica, os três tipos de bens situam-se em pé de igualdade. Isto é: alegrar-se com moderação e sofrer com moderação estão no mesmo plano de igualdade.
O estado de alegria não é superior à firmeza de ânimo que, sob a tortura, sufoca os gemidos: o primeiro tipo de bens é desejável, o segundo provoca a nossa admiração, mas ambos em si mesmos permanecem iguais, portanto aquilo que eventualmente existe de desagradável é dominado pela força, imensamente maior, do bem.
Se alguém considerar estas classes de bens como distintas é porque está desviando a atenção das virtudes em si e considerando as circunstâncias exteriores. Os bens autênticos têm o mesmo peso, o mesmo volume; os falsos, pelo contrário, contêm em si muito de vazio; por isto mesmo estes se apresentam à vista como atraentes e valiosos mas, se forem devidamente sopesados, verificar- -se-á como são enganosos. É esta a verdade, caro Lucílio:
aquilo que a justa razão nos recomenda é sólido e permanente, dá-nos firmeza ao ânimo e conserva-o para sempre elevado. Pelo contrário, aquilo que inconscientemente a opinião vulgar considera como bom só satisfaz quem se contenta com o supérfluo. Mais ainda: aquilo que as pessoas temem enche os espíritos de receios e, tal como os animais, perturba-os com uma aparência de perigo.
Consequentemente é sem motivo que ambas estas situações confundem e atormentam a alma: nem a primeira merece causar alegria, nem a segunda provocar receio. Somente a razão permanece inalterável e firme nos seus juízos, porquanto não se submete aos sentidos, antes os submete ao seu domínio.
A razão é igual à razão, tal como a retidão é igual a si mesma; por conseguinte toda a virtude é igual à virtude, pois a virtude outra coisa não é senão a razão reta. Todas as virtudes são formas da razão; são formas da razão se forem todas retas e se forem retas são todas iguais.
Conforme for a razão, assim serão as ações; logo todas as ações são iguais, pois se todas forem idênticas à razão todas serão iguais entre si. Afirmo que todas as ações são iguais entre si na medida em que se conformam com a moral e a retidão; quanto ao resto poderão ser muito distintas, de acordo com as circunstâncias, dado que umas terão maior e outras menor alcance, umas serão mais brilhantes e outras menos, umas far-se-ão sentir sobre muitas e outras sobre poucas pessoas.
Em todas elas, porém, aquilo que têm de melhor – a sua perfeição moral – é idêntico. Semelhantemente , todos os homens de bem são iguais na medida em que são homens de bem, embora haja entre eles diferenças de idade – uns são velhos, outros jovens – , de constituição física – uns são belos, outros feios – , de condições de vida – uns são ricos, outros pobres, um goza de favor e poder e é conhecido em várias cidades e nações, outro vive retirado e desconhecido da grande massa. Todos, porém, são iguais na sua condição de homens de bem.
A mera sensibilidade não é capaz de ajuizar sobre o bem e o mal; é incapaz de destrinçar o que é útil do que é inútil. Não consegue formular uma opinião senão quando é posta perante uma situação concreta; não sabe prever o futuro, tal como é incapaz de lembrar o passado; não tem a noção da continuidade.
Ora é precisamente a continuidade que permite a evolução constante e a unidade de uma vida que segue o caminho da retidão. A razão é que é, portanto, o supremo juiz do bem e do mal; a razão considera sem valor tudo quanto lhe é alheio e exterior, e àquelas coisas que em si mesmas não são bens nem são males julga-as como acessórios sem a mínima importância, pois para a razão todo o bem está situado na alma.
Há, não obstante, certos bens que a razão considera de primeira ordem e que procura expressamente alcançar, tais como a vitória, os filhos honestos, o bem estar da pátria; outros, serão de segunda ordem – aqueles que só ocorrem em circunstâncias adversas, tal como a coragem de suportar a doença, a tortura, o exílio; outros bens ainda são de valor intermédio, aqueles dos quais se não pode dizer que sejam propriamente conformes ou antagónicos à natureza, tais como caminhar com gravidade ou estar sentado com decência.
De fato, estar sentado não é menos conforme à natureza do que estar em pé ou andar. Quanto aos dois primeiros tipos de bens superiores também são distintos entre si: o primeiro é conforme com a natureza – sentir satisfação com o afeto dos filhos ou o bem estar da pátria; o segundo é contrário à natureza suportar valorosamente os tormentos ou sofrer a sede provocada pela febre que nos devora as entranhas.
“Que estás dizendo? Então há algum bem que seja contrário à natureza?”
De modo algum! Pode sim, é dar-se que as circunstâncias das quais decorre um determinado bem sejam, elas, contrárias à natureza. Ser ferido, ser consumido numa fogueira, sofrer de uma doença grave – tudo isto é contrário à natureza; conservar nestas circunstâncias a coragem e a firmeza de ânimo isso já é agir conforme a natureza. Em suma, e para expressar com concisão a minha ideia: as condições que geram um certo bem podem por vezes ser contrárias à natureza, um bem nunca o pode ser, porque nenhum bem existe sem a razão e a razão é conforme com a natureza. “O que é então a razão?” É a imitação da natureza.
“E em que consiste para o homem o supremo bem?” Em comportar-se segundo a vontade da natureza.
Uma objeção possível: “Ninguém duvida que haja mais felicidade numa paz nunca dilacerada do que na paz reconquistada à custa de muita efusão de sangue. Ninguém duvida que há mais felicidade na saúde nunca interrompida do que na saúde recuperada, à custa de muita energia e paciência, após uma grave doença, daquelas que fazem esperar o pior.
Similarmente, ninguém duvidará que a alegria será um bem maior do que a valentia da alma perante torturas infligidas por feridas ou fogueiras.” Nada mais falso! Tudo quanto é fortuito é passível das maiores diferenças, pois é avaliado segundo a utilidade que ocasiona aos interessados. Mas a única finalidade dos bens consiste em conformar-se com a natureza, e esta finalidade verifica-se em todos por igual. Quando nós, no senado, damos o nosso acordo a uma determinada opinião, não é possível dizer-se que este senador “deu mais acordo” do que aquele! Todos, de fato, se pronunciaram por uma mesma opinião.
O mesmo afirmo eu que se passa com as virtudes: todas elas estão de acordo com a natureza. O mesmo afirmo eu que se passa com os bens: todos eles estão de acordo com a natureza. Há pessoas que morrem na juventude, outras na velhice, outras mesmo na infância, sem nada mais lhes ter sido dado senão vislumbrar a vida: todas elas, contudo, eram igualmente mortais, embora . a umas a morte tivesse consentido uma vida mais longa, a outras as tivesse ceifado em plena flor, e a outras as tivesse cortado logo de início.
Um homem morreu enquanto jantava; a outro, a morte seguiu-se ao sono sem interrupção; outro extinguiu-se enquanto fazia amor. Confronta com estes casos o daqueles que morreram trespassados por uma arma, envenenados pela mordedura de uma serpente, esmagados num desabamento, paralisados a pouco e pouco por um contínuo definhamento dos nervos. Poderá dizer-se que o modo de morrer foi melhor nuns casos e pior noutros; em todos eles, porém, o resultado foi idêntico, a morte.
Ou seja, o caminho seguido pode ser diverso, o ponto de chegada é só um. Não há uma morte maior e outra menor; em todos os casos as “medidas” são as mesmas, isto é, o termo da vida. Posso afirmar que com os bens se passa o mesmo: este bem ocorre entre prazeres contínuos, aquele entre circunstâncias tristes e dolorosas; este limitou-se a guiar os favores da fortuna, aquele teve de vencer as suas violências; mas um e outro são igualmente bens, embora .o primeiro tivesse percorrido uma estrada plana e aprazível e o segundo uma via cheia de obstáculos. Mas o ponto a que todos visam é um e o mesmo: são bens, são dignos de apreço, fazem companhia à virtude e à razão; a virtude torna iguais todas as coisas que admite como suas.
Não há motivo para, entre os prinápios da nossa escola, admirares este em especial. Segundo Epicuro há duas espécies de bens, das quais resulta o bem supremo, o cúmulo da felicidade: ausência de dor no corpo, ausência de perturbação** na alma. Epicuro, fr. 434 Usener.
Estes bens, se atingiram o ponto máximo, já não podem acrescentar-se mais, pois como é possível acrescentar-se aquilo que já atingiu o ponto máximo?! O corpo não conhece a dor: o que é que pode acrescentar-se a este estado de ausência de dor? A alma goza de estabilidade e de calma: o que é que pode acrescentar-se a este estado de tranquilidade?
O céu, quando está sereno, quando está perfeitamente transparente não é susceptível de tornar-se mais claro ainda; do mesmo modo um homem que vele pelo seu corpo e pela sua alma e que faça depender de ambos o seu bem supremo, atingirá o total equilíbrio, alcançará a plenitude dos seus desejos se se encontrar ao abrigo da agitação na alma e da dor no corpo.
Se a estas se adicionarem ainda outras circunstâncias favoráveis, tal não aumentará em nada o supremo bem, quando muito dar-lhe-á, por assim dizer, sabor e aprazimento. Esta concepção do bem supremo, para a natureza humana, dá-se por satisfeita com a paz quer no corpo quer no espírito.
Vou mostrar-te agora como Epicuro estabelece também uma distinção entre os bens, muito semelhante à que nós, estóicos, fazemos. Epicuro, fr. 449 Usener.
Segundo Epicuro, há alguns bens de que ele preferiria usufruir, tais como a tranquilidade de um corpo liberto de todas as afecções e a serenidade de uma alma gozando da contemplação dos seus bens próprios; existe uma outra categoria de bens, a qual, embora preferisse prescindir dela, nem por isso deixa de apreciar e aprovar: refiro-me àquilo que atrás mencionei – a capacidade de suportar a falta de saúde e as dores mais agudas, capacidade essa que Epicuro bem demonstrou possuir naquele que foi o último e o mais feliz dia da sua vida.
Diz ele, de fato, que os sofrimentos causados pela bexiga e por uma úlcera no estômago eram tais que a dor já não podia ser maior, mas que mesmo assim esse dia era para ele um dia feliz. Epicuro, fr. 138 Usener.
Ora ninguém pode ter um dia feliz se não se encontrar na posse do bem supremo. Por conseguinte também Epicuro classifica como bens alguns que preferiríamos não experimentar mas que dado que as circunstâncias os provocaram, há que aceitar, aprovar e considerar idênticos aos mais elevados.
Não pode deixar de considerar-se idêntico aos bens superiores este bem que pôs termo a uma vida feliz, um bem a quem Epicuro rende graças nas últimas palavras que proferiu! Vais permitir-me, meu excelente Lucílio, uma declaração bastante mais audaciosa: se fosse possível alguns bens serem superiores a outros, eu preferiria até aqueles que parecem dolorosos e declará-los-ia superiores aos bens tranquilos e aprazíveis.
Na realidade é mais importante vencer as dificuldades do que moderar a felicidade. Bem sei que é à razão que devemos a capacidade de manter, quer o equilíbrio na felicidade quer a coragem nas atribulações. Pode ser igualmente corajosa a sentinela que dorme tranquilamente fora do muro do aquartelamento quando não há perigo de incursões inimigas, ou o soldado que, com os tendões cortados, combate de joelhos sem largar as armas.
Mas só aos soldados que voltam do combate cobertos de sangue é que se grita: “Bravo, seus valentes!” Por isso mesmo eu acho mais dignos de apreço aqueles bens que resultam do esforço, da coragem, do afrontamento com a fortuna.
Como posso eu hesitar em prestar maior louvor à mão de Múcio, mutilada pelo fogo, do que à mão sã e salva de outro homem qualquer? Múcio manteve-se firme, desprezando os inimigos, desprezando as chamas, e olhou sem tremer a sua mão que mirrava consumida no braseiro do inimigo; e assim ficou até que Porsena, satisfeito da tortura mas invejoso da glória de Múcio, mandou, contra vontade dele, retirar o braseiro. Como não eu incluir este bem entre os primeiros e considerá-lo tanto maior do que os bens tranquilos e ao abrigo da fortuna, precisamente quanto mais raro é vencer um inimigo sacrificando a mão do que empunhando as armas?
“Pois quê” – dirás tu. – “Serias capaz de desejar para ti um tal bem?!”
Como não, se um tal acto apenas o poderá fazer o homem que também pudesse desejá-lo? Haveria eu de preferir confiar o meu corpo a massagistas efeminados? De dar os meus dedos amolecidos a fricionar a uma qualquer prostituta, ou a um eunuco, tornado de homem em prostituta? Como não considerar mais feliz Múcio, esse homem que meteu a mão no fogo com o ar de quem se entregava aos cuidados de um manicuro?
Foi assim que ele corrigiu o seu primeiro fracasso: inerme e mutilado conseguiu pôr termo à guerra e com a mão inutilizada saiu vitorioso de dois reis!
Passar Bem!
(1) Vergílio, Aen., V, 334, onde, aliás, a palavra uirtus não tem o sentido de virtude (que escrevemos na tradução do verso por ser assim que Séneca a interpreta), mas sim o de valor, coragem física.