Carta 63
Lamento profundamente o falecimento do teu amigo Flaco, no entanto entendo que a tua dor não deve ultrapassar os limites do razoável. Não ousaria exigir de ti que não sentisses o mínimo abalo perante o fato, embora isso fosse o ideal.
Uma tal firmeza de ânimo, contudo, apenas está ao alcance de quem já se alçou muito acima das contingências da fortuna. E mesmo um homem assim não deixaria de sentir na alma uma beliscadura, se bem que somente uma beliscadura!
A homens como nós pode perdoar-se que deixemos correr as lágrimas, desde que não em excesso, e desde que nós mesmos as saibamos estancar. Importa que, perante o desaparecimento de um amigo, os nossos olhos nem fiquem secos nem inundados.
Chorar, sim, desfazermo-nos em pranto, isso não! Achas que eu pareço impor-te uma lei severa, quando até o maior poeta da Grécia concedeu às lágrimas tão somente o espaço de um dia, ou nos diz que até Níobe ‘não descurou os cuidados com a alimentação? (1)
Queres tu saber qual a causa da superabundância de lamentações e de prantos? Ê o uso das lágrimas como prova de desgosto; por outras palavras, o pranto não decorre da dor, mas do desejo de mostrar aos outros que sofremos! Ninguém prodigaliza manifestações de tristeza quando está sozinho… Ó desgraçada estultícia a nossa, que até da própria dor faz uma arma de propaganda!
“Como dizes? Então eu hei-de esquecer o meu amigo?!”
Curta recordação tu terás dele se a fizeres coincidir com as manifestações de pesar: qualquer sucesso fortuito dentro em pouco te fará abrir o rosto num sorriso! Nem sequer prevejo que passe muito tempo para que toda essa saudade se dilua, pois mesmo as aflições mais acesas cessam com o tempo. Basta que comeces a observar o teu próprio comportamento, e todos os sinais exteriores do teu desgosto cessarão.
De momento estás cultivando a tua dor; mas, por mais que a cultives, ela passará, e tanto mais depressa quanto mais intensa se mostra agora. Procedamos antes de modo a que a recordação dos desaparecidos seja para nós um momento de doçura.
Ninguém rememora voluntariamente uma coisa em que se não pode pensar sem aflição. Não é naturalmente possível que o nome de algum ente querido já falecido nos venha à memória sem um certo aperto na alma, mas esse aperto de alma nunca ocorrerá sem ser acompanhado de algum prazer.
O nosso amigo Átalo costumava dizer “que a memória dos amigos falecidos nos é agradável tal como certos frutos nos agradam apesar de ácidos, ou tal como no vinho excessivamente velho nos dá prazer o próprio travo; ao fim de algum tempo extingue-se em nós a parte da angústia e sentimos na recordação meramente a parte do prazer.”
A crer no que ele diz, “pensar nos amigos vivos e sãos é como saborear mel e bolos; a rememoração dos já falecidos, essa é um prazer com um certo sabor a amargo. Quem negará, porém, que os condimentos ácidos e picantes são bons estimulantes do apetite?”
Eu não partilho esta opinião: para mim, pensar nos amigos já desaparecidos é algo que nos proporciona uma doce satisfação; quando os tinha comigo sabia que os havia de perder, agora que os perdi é como se os tivesse sempre comigo!
Age com equidade, caro Lucílio, e não interpretes mal os benefícios que a fortuna te concedeu: ela roubou-te um amigo, mas fora ela quem o tinha dado.
Gozemos intensamente a companhia dos nossos amigos, até porque não podemos saber por quanto tempo o faremos. Pensemos também quantas vezes os deixámos para partir em longas viagens, quantas vezes estivemos sem os ver embora morando na mesma terra: compreenderemos deste modo que, mesmo estando eles vivos, não aproveitámos a sua companhia a maior parte do tempo.
E que dizes tu daqueles que não ligam importância aos amigos vivos, e os pranteiam exageradamente quando morrem? Parece que só têm amizade pelos defuntos! Por isso mesmo os deploram veementemente, com medo que a sua amizade por eles possa ser posta em dúvida, e daí esses sinais de afeto já fora de horas.
Se nós temos ainda outros amigos, julgá-los compensação insuficiente pela perda de um só, equivale a desmerecer e desconsiderar a sua amizade; se não os temos, então nós mesmos é que, mais do que a fortuna, fomos cruéis para conosco, pois se a fortuna nos privou de um amigo, nós fomos incapazes de fazer mais amizades.
De resto, quem não foi capaz de fazer mais do que um amigo, pouca amizade tinha certamente para oferecer! Um homem a quem roubaram a sua única túnica e se põe a autolamentar-se em vez de procurar os meios de se defender do frio, tentando encontrar algo com que se cubra – não te parece que atingiu o auge da insanidade? Tinhas um só amigo, acompanhaste o seu funeral; pois procura outro a quem dês a tua amizade. Encontrar um novo amigo é mais importante do que chorar o desaparecido.
O que vou dizer-te agora é uma verdade mais do que rebatida, mas nem por andar em todas as bocas eu deixarei de a repetir: quando deliberadamente não pomos nós um termo à nossa dor, o tempo o fará por nós. E nada há mais inconveniente para um homem avisado do que deixar o cansaço servir de remédio à dor.
Prefiro que sejas tu a afastar de ti a dor do que seja ela a afastar-se de ti. Cessa quanto antes de te entregar a manifestações de tristeza que, de um modo ou de outro, nunca poderás prolongar indefinidamente. Os antigos romanos instituíram para as mulheres um período de luto de um ano, não para que levassem um ano a chorar, mas para não chorarem ainda mais tempo. (2)
Para os homens não há prazo marcado pela lei, porque nenhum prazo conviria à sua dignidade. De todas essas pobres mulheres que só a custo se consegue afastar da pira fúnebre, arrancar de junto ao corpo do ente querido – indica-me uma só cujas lágrimas tenham durado um mês inteiro! Coisa alguma se torna aborrecida mais depressa do que a dor; uma dor recente suscita quem a console e provoca a simpatia dos outros, enquanto uma dor demasiado prolongada incorre no ridículo, e com razão, porquanto ou é fingida ou é idiota!
Sou eu que te escrevo estas palavras, eu, que tão imoderadamente chorei o meu grande amigo Aneu Sereno, eu, que com grande vergonha minha me vejo forçado a incluir-me no número daqueles que se deixaram vencer pela dor!
Hoje, no entanto, condeno a minha atitude passada, e compreendo que a principal causa do meu excessivo pranto foi o nunca me ter passado pela ideia que ele pudesse morrer antes de mim. Ocorria-me apenas que ele era mais novo, muito mais novo do que eu – como se o destino se preocupasse em respeitar a ordem de idades!
Mais uma razão para continuamente meditarmos na nossa condição de mortais, nossa e daqueles a quem amamos. O que eu deveria ter feito era dizer: “Sereno é mais novo do que eu, mas isso que tem? Deverá morrer depois de mim, mas também pode morrer antes. “Não o fiz, e assim o súbito golpe da fortuna encontrou-me desprevenido!
Neste momento medito em que tudo é mortal e que a mortalidade não obedece a qualquer lei; o que é possível, tanto é possível hoje como em outro dia qualquer.
Pensemos, caro Lucílio, que em breve também nós iremos para onde foi agora, para tristeza nossa, esse nosso amigo; até pode suceder que tenham razão os sábios e haja um lugar onde todos iremos residir após a morte: se assim for, esse amigo que julgamos ter morrido, limitou-se a partir para lá à nossa frente!
Passar Bem!
(1) ” Homero, Ilíada, XIX, 228-9: “É preciso enterrar sem mais hesitações o morto , depois de o chorar por um dia apenas”. Id., ibid., XXIV, 602-4: “Mesmo Níobe de belos cabelos não descurou a alimentação, ela que viu morrer na sua casa doze filhos, seis raparigas e seis rapazes na flor da idade.”
(2) V. Ovídio, Fast., I, 35-6: “Durante idêntico espaço de tempo (= 10 meses) deve a viúva manter na sua casa os sinais de luto após o funeral do marido”; cf. Id., ibid., III, 134.