Carta 57

Quando saí de Báias para regressar a Nápoles deixeime convencer sem dificuldade de que o tempo estava mau, o que me evitaria uma segunda viagem por mar. Só que a estrada estava de tal modo coberta de lama que mesmo assim quase me pareceu ter andado de barco…

Passei nesse dia por todas as torturas que os atletas sofrem: primeiro foi o banho de óleo, ao chegar à gruta napolitana (1) veio a chuva de poeira! E a gruta? Um cárcere interminável, uns archotes que, em vez de nos permitirem ver na escuridão, antes nos mostram a própria escuridão!

De resto, mesmo que o local fosse iluminado, a luz não atravessaria a poeira – e se o pó já é altamente incomodativo ao ar livre, o que não será erguendo-se em turbilhão num espaço fechado, sem qualquer saída de ar, abatendo-se sobre os passantes que o levantam!? Dois flagelos diametralmente opostos nos afligiram em simultâneo: na mesma estrada, e no mesmo dia, primeiro o suplício da lama, depois o da poeira!

Apesar de tudo, até a obscuridade do túnel me ofereceu tema de meditação: senti na alma um abalo, uma perturbação provocada, não pelo medo, mas pelo insólito e repulsivo deste espectáculo inédito.

Nem sequer está em causa a minha pessoa – tão distante ela está de um grau de virtude aceitável, para já não dizer perfeito! – , mas mesmo um daqueles homens acima dos ataques da fortuna sentiria na alma um estremeção e mudaria a cor do rosto.

Há certas sensações, meu amigo, a que nem mesmo a maior coragem consegue escapar: parece que é a natureza a recordar-nos a nossa condição de mortais! Por isso há quem se sinta arrepiado vendo uma cena de desolação, há quem sinta turvar-se-lhe a vista se, em pé na beira de um precipício, olhar lá para o fundo.

Não se trata de medo, mas de uma impressão, inteiramente natural, sobre a qual a razão não tem poder. Por isso mesmo há homens valentes, dispostos sem hesitar a derramar o próprio sangue, que não suportam a vista de sangue alheio; alguns perdem as forças e desmaiam ao ver abrir e tratar uma ferida recente, outros, uma ferida já antiga e cheia de pus; outros há ainda que tremem ao ver uma espada mas aguentam bem os seus golpes.

Mas, como estava dizendo, eu senti, não direi uma aflição, mas pelo menos uma certa perturbação; e quando novamente pude ver a luz do dia invadiu-me uma irrefletida e incontrolável alegria.

Comecei então a dizer a mim mesmo como é estulto recear mais certas coisas do que outras quando quer umas quer outras produzem o mesmo resultado. Que diferença faz, por exemplo, que nos desabe em cima um torreão ou uma montanha? Nenhuma, e no entanto a muita gente mete mais medo o desabamento da montanha, embora em qualquer dos casos o efeito seja igualmente a morte.

Quer dizer, o medo deriva não do resultado em si, mas das circunstâncias que geram esse resultado.

Imaginas que faço minhas as palavras daqueles estóicos para quem a alma de um homem esmagado sob uma massa de grande peso não poderia permanecer una, mas sim, privada de sair livremente do corpo, imediatamente ficaria reduzida a fragmentos (2) ?

Não, não faço, porque me parece laborar em erro quem faz uma afirmação destas. Tal como uma chama não pode ser comprimida (pois se escapa, e rodeia o objeto que tenta pressioná-la); tal como o ar não é afetado por golpes ou estocadas, não se deixa sequer cortar, antes imediataménte rodeia o objeto que tenta repeli-lo; assim também a alma, que é feita de matéria extremamente ténue, não pode ser coagida nem esmagada dentro do corpo: graças à sua subtileza, consegue escapar-se através da massa que a comprime.

O raio, mesmo que reluza com violência por um largo espaço, acaba por escapar-se através de uma minúscula abertura; a alma, ainda mais ténue do que o fogo, consegue escapulir-se seja através de que corpo for. Resta agora é saber se a alma pode ser imortal (3)

Por agora fica-te com esta certeza: se ela sobrevive ao corpo, então não há modo algum de destruí-la, pois nem a imortalidade admite reserva, nem àquilo que é eterno se pode fazer o mínimo mal.

Passar Bem!

(1) Sobre a gruta napolitana v. Esrrabão 246 b e.

(2) Séneca não atribui nominalmente esta teoria a nenhum estóico em particular; o passo é inserido entre os fragmentos de Crisipo por v. Arnim (S. V. F., II 820).

(3) Cleames admire a imortalidade de todas as almas (S. V. F., II, 811), Crisipo apenas das dos sábios (ibid., 810, 811). Tal imortalidade, porém, apenas dura até à ocorrência da conflagração (‘EKrrÍ!pwm<;) universal. – Sobre a posição do estoicismo perante o problema da imortalidade da alma v. René Hoven, Stoicisme et stoiciens face au probléme de l’au·delá, Paris 1971 (pp. 107 ss.: a posição de Séneca).

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