Carta 51
Cada um faz como pode, LucĂlio amigo ! Tu estĂĄs aĂ ao pĂ© do Etna, a famosĂssima montanha da SicĂlia, Ă qual Messala, ou VĂĄlgio (encontrei o adjetivo em ambos) apelidou de âĂșnicaâ, nunca percebi porquĂȘ. HĂĄ muitas regiĂ”es vulcĂąnicas, nĂŁo sĂł montanhosas, que Ă© o caso mais frequente talvez devido Ă tendĂȘncia que o fogo tem para subir, mas mesmo regiĂ”es de planĂcie.
Eu por mim, à falta de melhor, contentei-me com Båias, onde aliås cheguei num dia para partir no seguinte. Båias é uma terra a evitar, pois apesar dos seus dons naturais, transformou-se num lugar onde reina a vida de prazer.
âQue dizes? EntĂŁo hĂĄ locais que nos devem inspirar repugnĂąncia?â
Não é isso. O que eu quero dizer é que hå certos tipos de vestuårio mais adequados ao såbio, ao homem honesto, do que outros; não porque sinta repugnùncia por uma ou outra cor, mas porque acha esta ou aquela pouco própria para quem fez voto de austeridade.
Com as terras sucede o mesmo: o såbio, ou mesmo o homem que tende para a sabedoria (1) , recusarå estabelecer-se naquelas que considera impróprias para os bons costumes.
AlguĂ©m que queira levar uma vida retirada nĂŁo irĂĄ escolher Canopo, embora nenhuma lei nos impeça de ser austeros em Canopo, ou mesmo em BĂĄias, que estĂĄ transformada num autĂȘntico antro de vĂcios. Aqui a vida de prazer nĂŁo conhece restriçÔes, Ă© perfeitamente desbragada, como se a prĂłpria cidade exigisse uma taxa de imoralidade! Para morar devemos escolher um lugar saudĂĄvel tanto para o corpo como para o carĂĄter.
Eu nĂŁo gostaria de viver rodeado de carrascos ou de tabernas! Que necessidade tenho eu de ver bĂȘbados caminhando Ă beira-mar aos baldĂ”es, as orgias de barco ou de lagos ecoando com cantos e orquestras, de ver, enfim, todo o desregramento que a vida de prazer faz gala em cometer e ostentar?
Devemos evitar o mais possĂvel tudo o que possa excitar os nossos vĂcios. Devemos endurecer a alma, mantendo-a afastada de todas as seduçÔes de prazer. Um quartel, de inverno bastou para amolecer AnĂbal; este homem que atravessara indĂłmito as neves dos Alpes sucumbiu Ă s molezas da CampĂąnia: vencedor na guerra, foi vencido pelos vĂcios (2)
A nossa vida Ă© tambĂ©m um combate, Ă© uma expedição guerreira em que nunca nos podemos entregar ao repouso e ao lazer. Primeiro que tudo devemos derrotar os prazeres que, como vĂȘs, sĂŁo capazes de dominar mesmo os Ăąnimos mais duros. Quem tiver a noção do esforço exigido pela vida da sabedoria compreenderĂĄ que esta luta nĂŁo se vence atravĂ©s da sensualidade e da moleza (3)
Que me interessam esses banhos quentes, essas estufas em que se concentra um ar seco que faz destilar o corpo? Todo o suor deve provir do trabalho. Se agĂssemos segundo o exemplo de AnĂbal, se interrompĂȘssemos o curso das operaçÔes bĂ©licas para ir aquecer o corpo no banho, toda a gente nos censuraria com razĂŁo essa inoportuna preguiça, perigosa para um vencedor, quanto mais para quem ainda anda atrĂĄs da vitĂłria! A nossa expedição Ă© mais dura que a dos soldados cartagineses: recuemos, e serĂĄ maior o perigo, avancemos, e serĂĄ maior o esforço!
A fortuna declarou-me guerra. Eu nĂŁo obedeço Ă s suas ordens, nĂŁo aceito o seu jugo, mais, pretendo mantĂȘ-la Ă distĂąncia, o que implica ainda maior coragem. NĂŁo posso deixar que a alma amoleça; se fizer concessĂ”es ao prazer, terei de fazĂȘ-las Ă dor, ao cansaço, Ă pobreza; a ambição e a ira quererĂŁo tomar conta de mim; ver-me-ei dilacerado, despedaçado entre inĂșmeras paixĂ”es.
A liberdade Ă© a nossa meta, Ă© o prĂȘmio das nossas canseiras.
Sabes em que consiste a liberdade? Em nĂŁo ser escravo de nada, de nenhuma necessidade, de nenhum acaso; em lutar de igual para igual com a fortuna. Se algum dia eu sentir que ela tem mais força do que eu, mesmo assim essa força serĂĄ inĂștil.
Nunca me deixarei vencer: a morte serĂĄ o meu recurso.
Quem atender a estas reflexĂ”es deve forçosamente escolher para residir locais sĂ©rios e austeros. Um clima excessivamente doce efemina os Ăąnimos; as caracterĂsticas geogrĂĄficas contribuem indiscutivelmente para, em certa medida, diminuir a robustez. As azĂ©molas que endureceram os cascos em pisos ĂĄsperos sĂŁo capazes de percorrer qualquer caminho; os animais criados em pastagens de terra mole e hĂșmida depressa se vĂŁo abaixo. O melhor soldado Ă© o oriundo das regiĂ”es montanhosas; o homem da cidade, o escravo nascido em casa (4), esses sĂŁo uns fracos.
A mão que passou do arado para as armas aguenta qualquer trabalho; o atleta que se treina com o corpo coberto de óleo sucumbe ao primeiro embate. Um ambiente geogråfico mais duro då firmeza ao ùnimo e torna-o apto a grandes empresas.
Seria preferĂvel para CipiĂŁo passar o exĂlio em Liturno do que em BĂĄias: Ă queda de um tal homem nĂŁo Ă© justo dar tĂŁo voluptuoso retiro! Os primeiros homens em cujas mĂŁos a fortuna do povo romano colocou o seu destino – C. MĂĄrio, Cn. Pompeio, CĂ©sar – edificaram, Ă© certo, as suas vilas na regiĂŁo de BĂĄias, mas foram construĂ-las no alto dos montes: pareciam assim mais dignas de homens de armas, colocadas em sĂtios donde completamente dominavam a planĂcie vizinha.
Observa a posição que eles escolheram, vĂȘ os locais em que elevaram as suas casas e considera o seu aspecto: mais te parecerĂŁo fortalezas do que vivendas. Julgas que alguma vez M. CarĂŁo iria viver nessa cidade para contar quantas mundanas lhe passavam diante dos olhos de barquinho, para contemplar todas as embarcaçÔes pintadas de diversas cores, para ver todo o lago coberto de pĂ©talas de rosa e ouvir durante a noite o barulho das serenatas?
NĂŁo Ă© verdade que CatĂŁo preferiria deitar-se numa trincheira cavada por suas mĂŁos para passar uma Ășnica noite? E quem, se for homem a sĂ©rio, nĂŁo preferirĂĄ ser despertado do sono por um clarim guerreiro do que por uma canção?
Mas jĂĄ chega de diatribe contra BĂĄias; contra os vĂcios, porĂ©m, nunca ela serĂĄ excessiva. Contra estes, LucĂlio, peço-te que movas uma guerra sem quartel. Os vĂcios tambĂ©m nĂŁo teriam mercĂȘ contigo. Repele todas as paixĂ”es que te dilaceram o coração; se outra maneira nĂŁo houver de as arrancar, melhor te seria que, juntamente com elas, arrancasses tambĂ©m o coração! Combate sobretudo os prazeres, trata-os como os teus piores inimigos.
Tal como os ladrĂ”es a quem os egĂpcios chamam âÏiληÏαÏâ(5)eles sĂł nos abraçam para melhor nos estrangularem.
Passar Bem!
(1) Note-se a gradação: o âsĂĄbioâ, o âhomem de bemâ de primeira categoria, âĂ© como a fĂ©nix, que sĂł aparece uma em quinhentos anosâ (carta 42,1); Ă© um modelo ideal de que procura aproximar-se âo homem que tende para a sabedoriaâ, que Ă©, afinal, o caso de LucĂlio, e do prĂłprio SĂ©neca.
(2)Sobre AnĂbal e a dolce vita de CĂĄpua v. Tito LĂvio, XXIII, 18,10 ss.
(3)Â Cf. Katha-Upanishad, I, 3,14: âThe sharp edge o/ a razor is difficult to pass over; thus the wise say the path (to the Se!/) is hardâ ( trad. F. Max MĂŒller, in The Sacred Books o/ the East, voL XV – The Upanishads, part II).
(4) O escravo nascido na casa do senhor (uerna), por oposição ao escravo prisioneiro de guerra.
(5) No original (philetas), segundo uma conjectura de Muret que pressupĂ”e um jogo de palavras entre ÏηληÏÎ·Ï âladrĂŁoâ e ÏηληÏÎ·Ï âamante”, facilitado pela pronĂșncia tardia do âη como i.