A tua carta deu-me um enorme prazer. Consente que eu use o vocabulário de toda a gente, sem entenderes as minhas palavras em sentido estóico.
É crença nossa que todo o prazer é um vício. Seja; nem por isso deixamos de empregar o termo “prazer” para denotar uma alegria interior.
Sei muito bem, repito, que, de acordo com os nossos dogmas, o “prazer” é uma coisa indigna e que apenas o sábio conhece a verdadeira alegria, essa exaltação da alma na plena posse dos seus bens autênticos (1) .
Em linguagem corrente, porém, dizemos que nos deu “grande prazer saber de alguém que foi nomeado cônsul, ou se casou, ou a sua mulher teve uma criança, tudo isto circunstâncias que não só não são causa de alegria como frequentemente são o prelúdio de futuros infortúnios; ora a alegria nem conhece termo nem pode transformar-se no seu oposto.
Por isso mesmo, quando o nosso Vergílio refere
do espírito as perversas alegrias Vergílio, Aen., VI, 278-9.
usa uma frase bonita, mas inadequada, dado que a alegria nunca pode ser perversa.
Com o termo “alegrias” ele pretendia referir-se aos “prazeres”; de resto, é evidente que o poeta está aludindo àquelas pessoas que se comprazem no seu próprio mal. Por minha parte, não será infundado dizer que a tua carta me deu um “enorme prazer”.
No caso de um não-sábio, – e por legítimo que seja a causa da alegria – , trata-se de um impulso incontrolável, susceptível de num momento passar ao extremo oposto, ocasionado pela imaginação de um falso bem, imoderado, irrefletido – e por isso mesmo, em vez de “alegria”, chamo-lhe antes “prazer”!
Mas voltemos ao assunto. O que me agradou na tua carta foi ver que dominas as palavras e que a preocupação do estilo não te leva a divagações extemporâneas. Há muita gente que se põe a escrever coisas que não tinha planeado movida pela sugestão de algum vocábulo bem soante. Contigo tal não sucede: as tuas frases são concisas e adequadas ao assunto; dizes apenas o que queres, e sugeres ainda mais do que dizes.
O teu estilo é sintoma de algo muito mais importante: de que a tua alma se não interessa pelo supérfluo, pelo bombástico. Encontro em ti, contudo, algumas metáforas que, sem serem audaciosas, são de certo modo atrevidas; encontro símiles – mas proibirem-nos o uso destas figuras a pretexto de que só nos poetas elas são legítimas, significa que se não leram os autores antigos, de uma época ainda não deformada pela obsessão da eloquência.
Tais autores, embora falando com simplicidade e com a única preocupação de se fazerem entender, têm um estilo repleto de comparações, que, aliás, reputo necessárias aos filósofos, não pela mesma razão que aos poetas, mas como meio de superar as limitações da linguagem e de permitir, quer ao orador quer ao auditório, a apreensão direta da matéria em causa.
Neste momento ando interessado em ler Sêxtio, um autor penetrante que, conquanto escreva em grego, professa uma filosofia adequada ao carácter romano. Chamou-me a atenção um símile usado por ele: quando se presume que o inimigo pode irromper inesperadamente sem se saber donde, o exército deve avançar formado em quadrado sempre pronto para o combate.
“A mesma coisa” – diz ele – “deve fazer o sábio: todas as suas virtudes devem estar uniformemente alerta, de modo a que, mal deparem com o mínimo obstáculo, imediatamente se lhe oponham, respondendo sem precipitações à vontade da alma que as comanda!”
Nos exércitos, os grandes chefes ordenam as tropas de maneira que a ordem do general seja simultaneamente ouvida em todas as linhas, dispostas de tal forma que a infantaria e a cavalaria dêem pelo sinal emanado do posto de comando; procedimento idêntico ao verificado nas tropas diz-nos Sêxtio que muito mais necessário é ainda para cada um de nós.
Frequentemente dá-se o caso de um exército temer o inimigo sem motivo e de o itinerário que lhe parecera mais perigoso ser afinal o mais seguro. A ignorância, essa, está sempre em sobressalto; os perigos assaltam-na quer de cima quer de baixo; à direita e à esquerda há razões de pânico; os perigos quer a atacam pelas costas quer se lhe levantam na frente; qualquer situação a enche de medo, a encontra impreparada, a tal ponto que o próprio socorro a apavora!
O sábio, porém, sempre alerta, sempre pronto a responder a qualquer assalto, não recuará um passo mesmo que sobre ele caiam a pobreza, a desgraça, a ignomínia ou a dor; impertérrito, o sábio afrontará estes males, passará pelo meio deles.
A nós, múltiplas causas nos deixam manietados e enfraquecidos. Longa tem sido a nossa permanência entre estes vícios, pelo que não será fácil a libertação. Na realidade, não estamos apenas manchados por eles, estamos mesmo impregnados totalmente !
Não vale a pena introduzir aqui novas comparações! Analisemos antes um problema que muitas vezes debato comigo mesmo: por que causa a ignorância nos mantém agarrados com tanta força?
Primeiro, porque não a repelimos com suficiente energia nem usamos todas as nossas forças para nos libertarmos dela; depois, porque não confiamos o bastante nas lições dos sábios nem as interiorizamos como devíamos, antes tratamos uma tão magna questão de forma leviana.
Como pode alguém, aliás, aprender suficientemente a lutar contra os vícios se apenas dedica a esse estudo o tempo que os vícios lhe deixam livre?
… Nenhum de nós aprofunda bastante esta matéria; abordamos o assunto pela rama e, como gente extremamente ocupada, achamos que dedicar umas horas à filosofia é mais do que suficiente. E o que mais nos prejudica é a facilidade com que o nosso amor próprio se satisfaz.
Se encontramos alguém que nos ache homens de bem, homens esclarecidos e irrepreensíveis, logo nos mostramos de acordo! Nem sequer nos contentamos com louvores comedidos: tudo quanto a adulação despudoradamente nos atribui, nós o assumimos como de pleno direito.
Se alguém nos declara os melhores e mais sábios do mundo, nós assentimos, mesmo quando sabemos que esse alguém é useiro e vezeiro na mentira!
A nossa autocomplacência vai mesmo tão longe que pretendemos ser louvados em nome de princípios que as nossas ações frontalmente desmentem: um, que se compraz a torturar os outros, gosta de ser gabado como modelo de clemência; outro, que rouba descaradamente, como a liberalidade em pessoa; outro ainda, que se entrega à embriaguez e à libertinagem, pretende passar pela fina flor da moderação!
A consequência é que ninguém mostra vontade de corrigir o seu carácter, pois cada um se considera a melhor pessoa deste mundo …
Alexandre percorria a Índia levando a guerra e a destruição a povos cuja existência até os seus vizinhos mal conheciam. Durante o cerco a uma cidade, ao circundar as muralhas na busca do ponto mais vulnerável das fortificações, foi ferido por uma flecha.
Durante algum tempo continuou montado, sem interromper o combate. Por fim, ao coagular o sangue na ferida, a dor começou a aumentar; a perna, pendurada da sela, foi ficando entorpecida e Alexandre viu-se obrigado a desmontar. Disse então:
“Toda a gente jura que eu sou filho de Júpiter, mas esta ferida grita bem alto que eu não passo de um homem!”
Façamos nós como Alexandre. Se a adulação estultifica as pessoas, cada uma por sua parte, cabe-nos a nós responder: “Considerais-me um homem esclarecido, mas eu sei bem quantas coisas inúteis desejo obter, quantos votos formulo que, a serem atendidos, só redundariam em meu prejuízo. Nem sequer sei ainda uma coisa que a própria saciedade ensina instintivamente aos animais: a justa medida na comida e na bebida. Ainda ignoro qual a quantidade que devo consumir!”
Vou ensinar-te agora o modo de entenderes que não és ainda um sábio.
O sábio autêntico vive em plena alegria, contente, tranquilo, imperturbável; vive em pé de igualdade com os deuses.
Analisa-te então a ti próprio: se nunca te sentes triste, se nenhuma esperança te aflige o ânimo na expectativa do futuro, se dia e noite a tua alma se mantém igual a si mesma, isto é, plena de elevação e contente de si própria, então conseguiste atingir o máximo bem possível ao homem!
Mas se, em toda a parte e sob todas as formas, não buscas senão o prazer, fica sabendo que tão longe estás da sabedoria como da alegria verdadeira. Pretendes obter a alegria, mas falharás o alvo se pensas vir a alcançá-la por meio da riqueza ou das honras, pois isso será o mesmo que tentar encontrar a alegria no meio da angústia; riquezas e honras, que buscas como se fossem fontes de satisfação e prazer, são apenas motivos para futuras dores.
Toda a gente, repito, tende para um objetivo: a alegria, mas ignora o meio de conseguir uma alegria duradoura e profunda. Uns procuram-na nos banquetes, na libertinagem; outros, na satisfação das ambições, na multidão assídua dos clientes; outros, na posse de uma amante; outros, enfim, na inútil vanglória dos estudos liberais e de um culto improfícuo das letras.
Toda esta gente se deixa iludir pelo que não passa de falacioso e breve contentamento, tal como a embriaguez, que paga pela louca satisfação de um momento o tédio de horas infindáveis, tal como os aplausos de uma multidão entusiasmada – aplausos que se ganham e se pagam à custa de enormes angústias!
Pensa bem, portanto, no que te digo: o resultado da sabedoria é a obtenção de uma alegria inalterável. A alma do sábio é semelhante à do mundo supralunar: uma perpétua serenidade.(2)
Aqui tens mais um motivo para desejares a sabedoria: alcançar um estado a que nunca falta a alegria. Uma alegria assim só pode provir da consciência das próprias virtudes: apenas o homem forte, o homem justo, o homem moderado pode ter alegria. “Que dizes?” – objetas tu. – “então os ignorantes e perversos nunca estão alegres?” Não mais do que um leão quando deita as garras à presa!
Aqueles que se deixam prostrar pelo vinho e pela luxúria, que passam a noite inteira entregues ao vício, que acumulam num corpo exíguo os prazeres até ultrapassarem o ponto de saturação – esses, infelizes, acabarão por exclamar o verso famoso de Vergílio:
sabes bem como entre falsas alegrias nós passámos a última noite (de Tróia).Vergílio, Aen., VI, 513-4.
Os libertinos passam a noite inteira entre falsas alegrias, passam-na como se ela fosse de fato a última noite! A alegria própria dos deuses, e daqueles que são idênticos aos deuses, porém, não conhece interrupção nem limite.
Teria limite, isso sim, se proviesse de algum fator externo. Como, porém, não depende das benesses de ninguém, também não está sujeita ao arbítrio de ninguém: a fortuna não pode roubar aquilo que não deu! (3)
Passar bem!
(1) Sobre a oposição enrre os conceitos de “alegria” e de “prazer” cf. u. g. · S. V. F., III, 431. Crisipo escreveu um tratado para demonstrar que o prazer não constitui um fim (τέλος) para o homem, e outro em que demonstra que o prazer não é um bem (cf. S. V. F., II, 18).
(2) Cf. Cícero, Rep., Livro VI (“o Sonho de Cipião”) XVII, in fine: “Por baixo (da esfera lunar) nada há que não seja mortal e efémero, excepro as almas concedidas pelos deuses à espécie humana; (mas) acima da Lua tudo é eterno”.
(3) Cf. o verso de Lucílio (já eirado por Séneca na carta 8, 10) fr. 2 Morei: “bem que se pode dar pode também tirar-se!”.