Perguntas-me como vai e o que faz o nosso amigo Marcelino. Ele vem pouco a minha casa, pela pura e simples razão de que tem medo de ouvir a verdade. Desse perigo, aliás, está ele livre, pois eu acho que se não deve dizê-la senão a quem está disposto a ouvi-la.

Por essa razão se tem posto em causa se Diógenes, bem como os outros cínicos, que falavam sem peias e admoestavam indiferentemente todos os passantes, tinham o direito de proceder assim. Qual o resultado de arengar a surdos ou a mudos, de nascença, ou por doença? “Para quê” – objetarás tu “poupar as palavras? São de graça!

Eu não posso saber se vou ser útil àquele a quem dou os meus conselhos, mas serei de certeza útil a alguém se prodigalizar conselhos a muitos. Sejamos liberais a socorrer os outros: à força de tentar, é impossível que uma vez por outra não tenhamos sucesso!

Meu caro Lucílio, aí está uma coisa que, em meu entender, um homem de valor não deve fazer! A proceder assim a sua autoridade como que se dilui e perde peso em face daqueles que, sendo menos desperdiçada, poderia ajudar a corrigir-se.

Um bom arqueiro não é o que acerta algumas vezes, mas sim o que só ocasionalmente falha; uma arte não é válida quando atinge o seu objetivo por acaso.

Ora a sabedoria é uma arte: deve atingir um alvo seguroescolher discípulos capazes de aperfeiçoamento e afastar-se dos casos desesperados, embora não de chofre e sem tentar um último remédio, mesmo sem nenhuma esperança.

Eu ainda não desesperei do nosso Marcelino. É um homem que ainda pode salvar-se, desde que lhe deitemos a mão urgentemente. O perigo é ele arrastar consigo quem lhe deitar a mão! Marcelino tem um espírito muito vigoroso, embora com tendência para o mal.

De qualquer modo vou arriscar-me a esse perigo e atrever-me a apontar-lhe os seus defeitos. Ele procederá como de costume, recorrendo às suas pilhérias capazes de fazerem rir mesmo quem está de luto, troçará de si próprio primeiro, da nossa escola em seguida, e atalhará de imediato tudo quanto eu lhe disser.

Passará em revista as escolas filosóficas e imputará aos filósofos os subornos que recebem, as amantes, o prazer da mesa; indicar-me-á um que comete adultério, outro que frequenta a taberna, outro, a corte; apontar-me-á Aríston, o alegre filósofo que dá as suas lições de liteira, a altura melhor que escolheu para cumprir as suas obrigações …

Tanto que quando alguém perguntou a que escola pertencia, Escauro respondeu: “Peripatético é que não é, de certeza”! (1)

Também a esse homem notável que é Júlio Grecino perguntaram o que pensava de Aríston. “Não posso dizer, não sei do que ele é capaz quando anda a pé!”, respondeu, como se o interrogassem sobre um essedário.(2)

Em suma, lançar-me-á em cara esses charlatães que mais honestos seriam abandonando a filosofia do que tentando vendê-la. Decidi, contudo, sujeitar-me às suas graçolas: ele far-me-á talvez rir, mas pode ser que eu o faça chorar, e se ele teimar no riso, então eu, tanto quanto é possível quando as coisas vão mal, alegrar-me-ei por ao menos lhe ter cabido em sorte um tipo de loucura bem disposta!

Esta hilariedade, porém, não dura muito: repara e verás que em breve espaço de tempo as mesmas pessoas riem e entram em fúria com igual intensidade. Estou decidido a abordar Marcelino e a mostrar-lhe como ele valia tanto mais quanto menos caía no agrado de muitos.

Se não conseguir eliminar-lhe os vícios, pelo menos refreá-los-ei; não cessarão, mas tornar-se-ão menos frequentes; ou até talvez cessem se criarem o hábito de ser menos frequentes. Mesmo este resultado não seria despiciendo, pois em casos de doença grave um bom período de acalmia é quase equivalente à saúde.

Enquanto eu me preparo para cuidar do nosso amigo, tu, que tens capacidade e sabes de que base partiste, e por isso compreendes qual o alvo a atingir, vai corrigindo o teu modo de ser, vai ganhando coragem, vai-te robustecendo contra os teus receios; não passes em revista todos quantos podem inspirar-te medo.

Não seria estupidez ter medo da multidão num local onde só se pode passar um a um? Pois também não são muitos os que têm possibilidade de assassinar-te, ainda que muitos de tal te ameaçassem. A natureza dispôs as coisas de maneira que só uma pessoa nos poderá matar, tal como só uma nos deu a vida.

Se não fosses muito rigoroso, bem poderias isentar-me do último pagamento; mas eu não vou ser mesquinho agora que a dívida está no fim! Aí tens o que te devo.

“Nunca pretendi agradar ao vulgo; daquilo que eu sei o vulgo não gosta, daquilo que o vulgo gosta não quero eu saber.”

Quem é o autor? Pareces pensar que eu ignoro que pessoa é o meu discípulo!. .. É Epicuro; mas o mesmo te dirão os mestres de todas as outras escolas, peripatéticos, académicos, estóicos, cínicos.

Como pode de fato agradar ao vulgo alguém a quem só a virtude agrada? Não se conquista o favor popular por processos limpos. Terás de igualar-te primeiro ao vulgo, que só te aprovará quando te considerar um dos seus. Ora para a tua formação a opinião que tenhas sobre ti mesmo importa muito mais do que a dos outros.

A amizade de pessoas dúbias só se concilia por processos dúbios. Em que te ajudará nisto a filosofia, essa arte excelsa que a tudo sobreleva? Precisamente em levar-te a querer agradar mais a ti do que ao vulgo, a avaliar a qualidade, e não o número, das pessoas que emitem juízos sobre ti, a viver sem temor dos deuses ou dos homens, a poder vencer a adversidade ou a pôr-lhe cobro.

Por outro lado, se eu te vir andar famoso nas bocas do mundo, se à rua entrada, como à de histriões no palco, ressoarem vivas e palmas, se por toda a cidade mulheres e crianças te tecerem louvores, como não hei-de eu lamentar-te, sabendo como sei qual a via para se obter tal favor?!

Passar Bem!

(1)Os peripatéticos receberam este nome devido ao hábito de Aristóteles, o fundador da Escola, disrutir com os seus discípulos caminhando de um lado para o outro (em grego rrEpmoirúv). Aríston nunca poderia, por isso ser peripatético!

(2) Essedário: gladiador que combatia em carro de guerra ( esseda).

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